Uma "pré-história"

E algo acontece comigo, sinto-me existir. Não é possível saber onde estou, nem de onde vim e muito menos pra onde vou. Não sei nem mesmo quem sou e talvez nem seja ninguém. Por falar nisso, será que têm mesmo alguma importância esses questionamentos? Afinal que diferença faz de onde eu vim? Ou para onde vou? Nesse caso não seria melhor eu me preocupar quando eu já tiver “ido”? Parece que não sou o único por aqui, de uma forma meio instintiva ou talvez intuitiva, eu sei que somos muitos. Neste vasto lugar não há muito que se fazer e passamos nosso tempo apenas nos movimentando a esmo. Às vezes penso não haver sentido algum em nossa existência, mas mesmo assim me preocupo um pouco com o meu inevitável fim. Fatalmente essa hora chegará, assim como já chegou para tantos outros que se foram e nunca mais voltaram.

Aqui as coisas quase não mudam, a nossa maior preocupação é com os abalos sísmicos que muitas vezes levam alguns de nós. Sempre se inicia sem dar muitos avisos, começa com um movimento intenso, todos se agitam, como se estivéssemos dentro de uma betoneira na velocidade máxima, somos jogados para todos os lados. O pânico é total, pois é inevitável que alguns partam. O que percebo é que sempre que saem alguns, aparecem outros na mesma proporção, em um ciclo continuo.

Sinto que minha hora está chegando e isso me assusta um pouco. Será mesmo que tudo se resume no simples intervalo entre o nascimento e a morte? Parece que em breve terei a resposta. Algo parece me empurrar pra fora desse mundo. Parece que deixarei aqui alguns daqueles que tenho pra mim como irmãos e outros destes virão comigo. Nesse momento algo me chama, e em um movimento muito rápido sou mandado para todos os lados e por ultimo, para fora.

Agora estou em um lugar que, para minha surpresa e decepção, não é muito diferente do anterior, todo o ambiente é muito parecido. Por outro lado, eu estou muito diferente, sinto muito medo e diante disso me vem uma vontade incontrolável de correr (e corro) o máximo que posso e junto com outros percorro um longo túnel que parece não ter luz no final. Depois de algum tempo, e para aumentar minha decepção, não chegamos a lugar nenhum. Eu cheguei muito mal colocado na “corrida” e fiquei muito tempo sem ter o que fazer e também sem força para fazer quase nada. As minhas forças diminuíam, estava muito mal e também sinto que alguns irmãos que vieram comigo já não estão mais por aqui e enquanto o tempo vai passando menos vão ficando. Por um momento achei que esse, de fato, seria o fim.

Acho que eu não devia estar decepcionado, afinal como poderia querer que fosse a morte? Uma coisa divertida? Pelo menos agora estava conformado, pois sabia que nada poderia fazer já que correr alucinadamente não havia adiantado muito e, além disso, acabaram com minhas forças. Bom, mas pelo menos parece que ainda não acabou, sinto algo se aproximar. Sem poder responder os questionamentos que me veio no momento, me aproximo e utilizando das minhas últimas forças consigo adentrar aquilo que não consigo agora nem mesmo descrever. Parece que fui o único que fez isso, logo após a minha entrada a porta se fechou. Agora estou sozinho, pelo menos me sinto um pouco melhor, o problema agora é a solidão. Não sei se fiz uma boa escolha, principalmente porque naquele momento tinha certeza que estava totalmente sozinho e o medo que já até tinha desaparecido voltou e com maior intensidade.

Sinto algo mudar em mim, estou se transformando, já nem sei mais quem sou (se é que algum dia cheguei a saber), já não sei mais se posso me chamar de "eu". Múltiplas sensações estranhas a todo tempo me envolvem e assim percebo que minha forma já em nada tem haver com a que cheguei aqui. Por um momento acho que já não estou mais no mesmo local, mas disso eu não tinha certeza. Sinto que estou muito diferente. As sensações com o passar do tempo se acentuam, não sei bem como explicá-las, sei que são inéditas.

Nunca pensei que a morte fosse um processo tão "burocrático" assim, afinal já havia passado em vários setores e nada define minha situação. Pra minha sorte esse novo "mundo" em que estava não era tão ruim assim, até que é bem aconchegante e por isso acho que até já estava me acostumado. Às vezes pensava: será que isso é a morte? Viverei aqui sozinho? Até quando? Enquanto isso, continuo a me transformar e sinto também estar aumentando. Parece que já faz muito tempo que estou aqui e já começo a ouvir sons que parecem vir de uma outra dimensão, não consigo distinguir muito bem, mas às vezes ouço coisas em um tom afetivo. Devem ser alucinações.

Para meu alivio, sinto que enfim é chegada a hora. Sinto-me muito estranho agora, parece que algo mais uma vez pretende me tirar desse lugar, sou pressionado por todos os lados e acho que agora não terei como escapar. Nesse processo, as sensações estranhas pareciam se acentuar e eu já sentia que algo aconteceria, e sabia dessa vez eu não escaparia. Sentia-me mesmo muito mal. Algo muito forte parece querer me tirar a vida, algo me empurrava, sentia um turbilhão de sensações estranhas. Por mais que lutasse sentia que não podia fazer muita coisa. A luz me cega, o barulho me ensurdece, sentia frio, dor, sentia algo estranho me tocar. Em pouco tempo, já estou num outro lugar que posso definir como estranhamente amplo e horrível, não conseguia sentir suas paredes e desesperado, choro muito. Suspenso no ar por algo que me segurava, ouvi mais uma vez um som que agora não parecia mais vir de outra dimensão:

─ Parabéns! É uma menina linda!

Lobinho Silva
Enviado por Lobinho Silva em 27/03/2010
Reeditado em 19/04/2010
Código do texto: T2163051