O enfermeiro

Eu estava mais aliviado, finalmente minha sobrinha de cinco anos estava convalescendo, reagindo bem às cirurgias a que submetera para correção da perna esquerda, com várias fraturas e outra para estancar uma enorme hemorragia interna, tudo causado pelo acidente em que fora vítima. Felizmente os médicos disseram que a recuperação será perfeita e que provavelmente não haverá nenhuma sequela.

Agora, sentado no quarto, olhando aquele corpinho inerte, ainda sedado consigo pensar um pouco melhor sobre tudo que aconteceu, as circunstâncias, enfim. Só me resta encontrar aquele enfermeiro tão atencioso, que nos guiou pelos labirinto e corredores do hospital, indicando as pessoas certas, os locais certos, a quem recorrer, coisa que eu sozinho fatalmente demoraria além do possível e minha sobrinha poderia ter perdido a vida, se não tivesse sido atendida prontamente. Por um tempo fico jogado nesse sofá, até que confortável, talvez em função do cansaço. Talvez pelo cansaço das últimas quinze horas de agonia, sem dormir nem me alimentar, na angústia de ver essa criança lutando para viver, como se estivesse agarrada na ponta de uma corda no precipício. Eu jamais vira tanta vontade de viver e sobreviver. Ela realmente merecia estar viva. Agora, ela sedada, dorme calmamente diante de meus olhos, com uma mangueira a lhe injetar soro na veia do braço direito e alguns aparelhos monitorando sua respiração e batidas cardíacas, mas já sem risco de perder batalha da vida. Com isso eu me acalmo, me entrego.

Finalmente consigo dormir longos e confortáveis trinta minutos, mesmo que sentado neste sofá de quarto de hospital. Parece pouco tempo de sono, mas foram revigorantes.

Acordo sobressaltado com algum ruído, por instantes tento entender o que se passa, mas logo caio na realidade dos fatos recentes. Olho para criança. Está tudo bem com ela. Sua mãe, minha irmã, está ao seu lado, em uma cadeira, como uma sentinela a vigiar seu tesouro.

Os acontecimentos do final de tarde do dia anterior me vêem à mente, quando eu estava na empresa em que trabalho como gerente de expedição. Me lembro bem que faltavam poucos minutos para o encerramento do expediente. O telefone toca, era a minha esposa em desespero, pedindo que eu fosse imediatamente para casa, pois a nossa sobrinha fora atropelada na frente de casa. Saí desesperado e em uns quinze minutos em chego em casa, me deparando com um quadro terrível, onde uma criança agonizava deitava na grama, diante de um grupo de curiosos sem ação. Ela fora atropelada por um automóvel em alta velocidade, dirigido por alguém sendo perseguido por uma viatura policial. Não houve prestação de socorro. Provavelmente os policiais nem tenham notado o atropelamento. Minha esposa solicitara ambulância de socorro, mas até aquele momento não chegara. Eu agi pelo instinto, segurando com jeito aquele pequeno corpo, acomodando-a no banco da frente do carro, totalmente inclinado, quase no formato de cama. Era o melhor que eu poderia fazer, me dirigindo às pressas para a o hospital de urgências, que não ficava tão distante de nossa casa. Não era a forma mais segura nem apropriada, mas tinha de ser feito. Talvez eu tenha agido com imprudência, talvez o sentimento paternal tenha me levado a agir instintivamente, no desespero para salvar aquela criança. Antes de sair recomendara a minha esposa que ficasse em casa, cuidando nossos dois filhos pequenos, eu daria notícias.

Por ter idade próxima a de meus filhos, frequentemente minha sobrinha vinha para nossa casa brincar com eles, passar a tarde, dormir, tinha acomodações suficientes. Em outras vezes meus filhos iam para a cada dela. Éramos uma família unida, todos muito próximos e amigos.

Da chegada ao hospital em diante foi muita tensão, correria, estresse, mas finalmente ela fora bem atendida. Caíra nas mãos de excelentes profissionais, que fizeram bem o seu dever de casa. Por telefone mantive minha esposa informada dos acontecimentos. Percebi que ela também ficara em uma vigília solitária e agonizante. Lembro-me de ter pedido a ela que ligasse para minha irmã, avisando do ocorrido com sua filha, mas que avisasse que estava tudo bem, ela não corria nenhum risco de morte. Ela fez isso, a mãe veio de imediato para o hospital, juntamente com o marido, mas as coisas já estavam encaminhadas, a criança na sala de cirurgia, não tinha muito o que fazer, além de rezar e esperar. A parte mais difícil já tinha sido vencida, que eram os exames, as primeiras verificações até a decisão das cirurgias. Além do mais eu estava incomunicável em áreas restritas como acompanhante, eles não conseguiriam se aproximar da filha.

Me levanto, perambulo aqui e ali, procuro pelo enfermeiro que nos acompanhou na noite anterior. Não sei seu nome, apenas o descrevo fisicamente, mas ninguém sabe informar. Uns dizem que nunca viu, outros dizem que são muitos enfermeiros em vários turnos e assim minha busca pouco a pouco foi se frustrando. Mas precisava encontrar aquele homem, agradecer-lhe a dedicação, o carinho a que nos dedicou por um bom tempo, talvez até mesmo negligenciando suas outras tarefas e outros doentes desse enorme hospital municipal de emergência.

Procuro na sala de controle, a lista dos enfermeiros que estiveram de plantão na noite anterior. Um impaciente encarregado se limita a responder com monossílabas sobre minhas indagações, mas mesmo assim percebo que pelas características que passei nenhum daqueles da lista parece ser ele. Saio daquela sala meio frustrado, sem saber onde procurar aquele homem. É importante que eu o encontre e agradeça por tudo que nos fez durante a noite anterior. Saio pelo corredor, olhando para lugar nenhum, lentamente, talvez ainda sob efeito de sono atrasado, quando uma enfermeira já de meia idade, simpática, fala comigo.

- Não pude deixar de notar, o senhor procura um enfermeiro. Trabalho aqui há mais de trinta anos, quem sabe eu consiga ajudá-lo a encontrar quem procura.

- É verdade. Ontem à noite, quando demos entrada aqui, eu trazia minha sobrinha agonizante com uma fratura exposta na perna, ele nos ensinou caminhos de consultório, de salas de exames e tudo fez para que ela fosse atendida o mais rapidamente possível. Como tinha muita gente nestes corredores, certamente eu sozinho me embaraçaria, perdendo tempo precioso, para o atendimento dela.

- Pode descrevê-lo para mim?

- Claro: ele é um senhor de uns 60 anos, 1,70 de altura aproximadamente, negro, corpulento muito simpático e sorridente.

- Não pode ser... Será??? De novo??? – A mulher parecia espantada.

- O que disse?

- Nada, apenas pensei alto. Me acompanhe, por favor. Talvez eu possa ajudá-lo.

Eu segui aquela simpática enfermeira por vários corredores, até que chegamos em um local que ela me informou ser o vestiário de funcionários. Me pediu que aguardasse do lado de fora, voltaria logo. Nesse local era mais tranquilo, não havia aquele congestionamento de pacientes e acompanhantes. Era uma área restrita do pessoal. Ela voltou com uma pasta com documentos e entre eles uma foto dessas 15x12 aproximadamente. Ela a pegou e mostrou-me.

- É essa pessoa que o senhor procura?

- Sim, é ele mesmo! Graças a Deus. Onde posso encontrá-lo? Sabe quando é seu turno novamente? Como ele se chama?

A mulher ficou séria. Notei que algo estranho se passava.

- Ouça, moço. O senhor não é a primeira pessoa a perguntar por ele, e tenta localizá-lo para agradecer por bons serviços prestados. Senta aqui, vou te contar uma breve historia. – Ela me indicou um banco de madeira que havia ali perto, onde me sentei e ela sentou ao meu lado.

- Tudo bem, mas o que tem de especial? Onde posso encontrá-lo?

- Ele se chamava Gustavo e já faleceu há oito anos atrás.

- Mas, mas... Como isso é possível?

- Eu entendo seu espanto, meu amigo! Mas acredite, é a pura verdade. Não é primeira vez que isso acontece. Frequentemente alguém comenta que foi ajudado por ele. A maioria nem dá atenção, como aqui é muito grande e o fluxo de pacientes é enorme, o de funcionários também, isso acaba passando despercebido.

Aquela mulher estava falando calmamente, sua voz transmitia paz e segurança. Apesar daquela revelação estranha, eu me sentia bem, não assustei nem ignorei aquela afirmação.

- É a primeira vez que comento isso com alguém, mas tenho notado com muita frequência que ele está aqui neste hospital, parece que cuidando dos pacientes, como sempre fez, durante os quarenta anos em que foi enfermeiro neste hospital. Na verdade era auxiliar. Mas de uma dedicação quase sublime. Por vezes foi condecorado por bons serviços prestados.

- Isso é incrível! – consegui exclamar.

- Olha, moço, eu tenho 55 anos de idade, perto de 35 destes trabalhando aqui nesse mesmo hospital, desde que era um simples posto médico da periferia. Sou uma das pessoas mais antigas aqui. O Gustavo morreu aos 70 anos, com 40 anos de serviços prestados também aqui nesse mesmo hospital. Éramos muito amigos, ele sempre foi um homem maravilhoso, bondoso e se preocupava com os pacientes. Jamais aceitou falar de aposentadoria, e isso chegou a trazer-lhe alguns problemas, pois a direção do hospital exigia que ele se aposentasse e ele desconversava e adiava ano após ano. Até que ficou enfermo e morreu aqui mesmo. Que Deus o tenha.

- Isso é espantoso! Ele nos passou na frente na fila de atendimento, depois me acompanhou com ela na sala de RX, no exame de sangue, Me avisou onde pegava os resultados, me pediu apressar, quase me obrigou a ser rápido, senão ela teria complicações. E isso foi até quando entreguei esses resultados o médico que a examinou. Este, quando os viu, deu prioridade absoluta ao seu atendimento, dizendo que se não fosse assim, talvez seria tarde demais. Então não o vi mais. Isso foi ainda na noite de ontem.

- Fico emocionada com isso. É uma coisa inexplicável, mas é real.

Conversamos mais alguns minutos e então ela disse que teria de voltar a seus afazeres, se despedindo de mim, me pedindo que a acompanhasse, deveríamos sair daquela ala restrita.

Eu a acompanhei e em breve estava de volta ao quarto, me deparando com a garota semi acordada, ainda com os aparelhos de monitoramento, sendo afagada pela mãe. Estava tudo bem, eu poderia ir em casa, descansar, ver minha esposa, que estava aflita, e como eu, passara a noite em claro. Ver meus filhos ia demorar, pois a essa hora eles estavam na escola.

Eu me despedi, abracei minha irmã, dei um beijo na menina ali deitada, com soro descendo-lhe na veia, com um sorriso angelical e calmo.

No caminho de casa, segui sem pressa, abri todos os vidros do carro, queria sentir o vento, sentir a manhã. Queria sentir a vida. Em silêncio, decidi que compartilharia aquela história apenas com minha esposa, afinal ela era minha cúmplice em tudo. Quanto a contar à criança, eu o faria num futuro distante, quando ela tivesse condições de entender tudo aquilo. Quanto a acreditar ou não, isso seria de livre arbítrio dela.

Faria Costa
Enviado por Faria Costa em 26/03/2010
Reeditado em 26/12/2018
Código do texto: T2160175
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