Missiva de um semi-deus urbano
_ Beatriz está dormindo ao meu lado, amo essa mulher mais do que a mim mesmo, sinto muito por lhe impor um peso tão grande e justo a ela; tão jovem e tão bela. Quisera eu poder voltar no tempo e poupá-la de tamanho sacrifício, mas mesmo com todas as minhas dádivas não posso fazê-lo.
Passou a mão nos longos e dourados cabelos da mulher deitada em sua cama; mantinha a caneta na boca e um bloco de papel na mão.
Voltou a escrever.
_ Não sei ao certo o que me aguarda essa noite, na verdade, nunca sei, mas aprendi a estar preparado, vou sair e serei engolido pelas trevas; só lamento por ela, a mulher da minha vida.
Tenho escrito certas coisas que acontecem em minha vida, se bem que jamais um ser humano sadio vá acreditar em uma linha sequer do que tenho relatado, quase todas as noites vejo tudo aquilo que pessoas ao redor da terra dariam tudo para ver e sabe qual é a conclusão? Não vale a pena. Felizes são aqueles que não vêem.
_ Já perdi a conta da quantidade de entidades que já enfrentei, a mim não importa o que são, anjos talvez, mas acho que não; seriam então outra coisa.
_ Ando tendo um pressentimento estranho; sei que muito em breve terei de por tudo o que tenho, tudo o que sou à prova, sim, pela manhã ligo a televisão e vejo o nome que me deram. Clérigo; é assim que me chamam, nunca parei para pensar num nome, mas gosto desse.
_ Cedo ou tarde verei novamente alguém que deseja o meu mal, alguém a quem já estimei muito nos anos da minha adolescência rebelde; um crápula, um monstro; quase me tornei como ele, quase fui uma sombra, mas ele não é humano e felizmente eu sou, foi o que me salvou. Vi maldades demais para não ser abalado, foi quando rompi o meu trato com ele.
Beatriz se revirou em seu doce sono e balbuciou algo, devia estar sonhando. Como alguém podia ser tão bela assim?_ pensava ele.
_ Por vezes acho que existe um propósito nas coisas, quero dizer, não sou uma pessoa comum, homens comuns não comandam os ventos nem seguram relâmpagos com as mãos como eu faço; tenho alguns dons, desde muito jovem e não os compreendo, mas resolvi usá-los para tentar ajudar, nem sempre é possível. Talvez as pessoas não queiram ser salvas.
_ Vi o mal vezes o suficiente para reconhecê-lo e todo ser humano o tem, está lá, como uma marca de nascença, um parasita da alma, só esperando o momento de se espalhar e consumir seu hospedeiro, reconheço isso em mim, reconheço isso na minha bela noiva deitada aqui ao meu lado, nos meus antigos amigos com quem já não falo a anos, em meus novos amigos e em todo ser humano.
Inclinou-se e beijou a testa de sua noiva que pareceu respondeu com um sorriso tímido.
_ Já ouvir dizer que o ser humano é decaído por natureza, o que para mim explicaria muito bem tudo isso, mas meu problema não são os homens e sim as forças que se movem no meio deles.
_ Esta noite vou em busca do acerto de contas, sei que quando eu envergar minha armadura, então já não serei mais eu e sim outra pessoa; como uma segunda personalidade. Farei todo o possível para pôr um fim nisso, mas sei que nunca terá um fim, talvez o tal dia do juízo seja o fim, mas minha batalha tem que terminar, quando começamos essa guerra éramos quatro; só eu ainda continuo de pé, e por quê? Não sei.
_ Pra que lutar?
_ Pra que resistir?
_ O peso é demasiado e o preço é muito alto. Quero ser normal, mesmo sabendo que jamais o serei, meus dons não desaparecerão assim, talvez isso só aconteça quando eu cumprir algo que falta; talvez seja justamente isso, colocar um fim na sombra que me criou, não a mim; meu alterego.
_ Sou capaz de saltar de um prédio sem me ferir, domino as artes das lâminas orientais e ocidentais desde que me entendo por gente. Eu não queria ser assim; minhas forças físicas parecem nunca parar de se desenvolver; estou cansado, quanto mais luto mais há para lutar; quanto mais corro, mais há para correr. Só quero descansar.
Ele parou por um instante, ponderou algumas palavras e continuou:
_ Tenho mais perguntas do que respostas; quem sou eu? O que sou eu? Não há explicação para minas dádivas em nenhuma das ciências conhecidas pela humanidade, aliás, acho que a minha humanidade está se esvaindo aos poucos. O fato de eu poder fazer mais do que as demais pessoas está gradualmente me corrompendo, estou perdendo o senso de proporção e temo pelo dia em que minha raiva contra os atos de desordem, descaso, hipocrisia, maldade e vandalismo que vejo diariamente me tornem algo tão demoníaco quanto aquilo que procuro combater.
_ Tais sentimentos combinados com força excessiva podem me corromper facilmente de herói a vilão em dias; o poder é sedutor e eu o tenho, mas não sei por quanto tempo ainda serei capaz de manter minha sanidade e minha humanidade. O único fio de contato que ainda possuo com a realidade e talvez seja essa a minha salvação é o amor de Beatriz, não quero perdê-la, mas tenho tanto medo de machucá-la; às vezes não me controlo e isso está acabando comigo.
_ Espero fazer o bem, mas estou me tornando desproporcional; agora sei que justiça extrema é estrema injustiça, mas já não posso controlar. Desejo que seja apenas uma fase ruim, embora não pareça. Eu era capaz de distinguir plenamente, o mal, das pessoas em que ele estava; agora já não consigo. E por esse motivo tenho errado constantemente, mas a outra pessoa em mim não se importa ela parece se alimentar dos meus erros, das minhas falhas e das minhas fraquezas. É como uma sombra interior tentando sair e cada vez que sai é mais difícil de eu empurrá-lo de volta para dentro; é como um lado obscuro de mim.
_ Hoje vou, mais uma vez ao encontro dessas forças corruptas que caminham pela cidade; forças que corrompem as pessoas e que parecem ter sua ação sobre mim multiplicada várias vezes fortalecendo meu outro eu.
_ Quase posso ouvir sua voz medonha sussurrando em meus ouvidos, rindo de minha incapacidade em detê-lo; ouço o tic-tac do tempo que me resta até que ele assuma o controle. Estou me afogando nesse mar sombrio de pensamentos, sentimentos e personalidades, estou só e distante da praia.
_ Fiz um trato ainda quando criança e não sabia que seria dessa forma; recebi um nome que deveria ser uma dádiva; Jano, mas não é; pelo contrário, parece uma maldição.
_ Amanhã quando eu retornar, espero ainda ser eu.