Réquiem para os mortos-vivos

Escrevo um poema com minha própria mão decepada. Mão de obra barata. A cortaram em noite de festa. Eles não gostam de jovens rebeldes. Chamam-nos de loucos, cães sem dono, escória. Degenerados: esse título precedia todos os outros. O lixo do mundo. Vermes sem futuro ou alento. Hereges. Malditos. Estamos marcados e eles tripudiam sem dó ou remorso. Sempre se soube que vamos morrer. Questão de tempo somente, pois a sorte nunca existiu. Somos apenas escravos.

Faça silêncio! Não pergunte! Cabeça baixa, olhando pro chão! Quem te disse que podia comer? Quem te disse que podia dormir? Quem te disse que podia amar? Quem te permitiu olhar nos meus olhos? Essa era a ultima frase que ouvíamos antes do tiro final. Eles querem dobrar nossa espinha, subverter nossa vontade. Marionetes para manipular e carne para queimar. Seus fornos não assam pão. Há sangue em seus olhos. Sangue e medo. Nós temos medo do que conhecemos. Eles têm medo por que foram ensinados. Esse tipo de medo costuma cometer desatinos.

Dizem que tudo isso é para o nosso bem. E que, não fazendo mal aos outros também protegemos a nós mesmos. Não estamos todos doentes? Doentes contaminam os sãos. Quando não existirmos mais a humanidade será tranquila e feliz. Nossos livros foram queimados. Nossos nomes amaldiçoados. Nossas crianças rastejam no pó. Não nos dão tinta ou papel. Escrevo meus versos em minha própria pele. A tinta é vermelha.

Eles entoam músicas fúnebres. Réquiens e elegias embaixo de nossas janelas. Mas as letras não cantam tristeza ou saudade. O ritmo tem a cadência de um tambor canibal. Esse e o meu corpo e entrego-o pelos pecados de todos. Esse é o meu sangue e em nome dele nenhum mais será derramado. Mentiras... Seus olhos são tortos, seus corpos são deformados. Suas bocas sorriem um sorriso falso. Suas belas roupas escondem a podridão que os corrompe. Eles atraem os incautos e inexperientes com doces promessas. Tentam mostrar que o seu mundo é belo e que nós queremos destruí-lo.

Eu tentei ensinar todos a escapar da fala macia do hipócrita. Por isso me trouxeram pra cá. O homem que ama a liberdade não é um perigo. Ele pode ser silenciado. Os que ensinam os outros a amar a liberdade não têm perdão. São homens marcados. Mas antes de vir para cá eu lancei meu último grito na praça: VIVA SUA VIDA, EU BEM QUE GOSTARIA DE VIVER A MINHA, MAS AGORA É TARDE DEMAIS! Algumas crianças ouviram e nelas eu confio. Passarão a mensagem adiante. Talvez ainda haja esperança, afinal. Mas essa espera me mata. Só uma coisa me frustra. Não pude dizer adeus aos amigos. Estão todos aqui, mas não nos deixam juntos um segundo. Falaríamos no futuro e em esperança. Um homem sozinho em esperança pode ser desacreditado. Mas a esperança que se faz forte é contagiosa. Eles não podem deixar a doença se espalhar. São poucos e não conseguiriam conter a epidemia.

Apesar de não os ver eu sei que estão todos aqui, pois eu sei identificar os sinais. Eu ouço o canto do músico que teve coragem de cantar a alegria e a tristeza do mundo. Cortaram sua língua, mas mesmo assim seus grunhidos formam uma melodia incomparável e bela. Seus versos falam em futuro e fé. E também em resistência, mas nunca em vingança. O jovem poeta escreve versos na areia do pátio. Ele teve coragem de rimar amor com paixão, quando todos diziam que se rima com dor. Por isso o trouxeram pra cá. A ele também cortaram a mão. Mas ele marca o compasso de seus versos com os pés. Suas estrofes falam no belo que ainda pode vir e no que há e não querem que vejam. Falam em luta, mas nunca em retaliação. Também está aqui a bela pintora, que retratou em seus quadros o que havia de torto no mundo. Nós juntamos nossos corpos em um mesmo quadro uma vez. Mas qual tela pode conter a beleza do amor? Nós pintamos nosso quadro na grama. A tinta foi nosso suor misturado com terra. E agora com sangue ela deixa sua marca na parede. Seus quadros mostram o escuro da noite e também o começo da aurora. As árvores de suas telas parecem agitadas por um vento profético.

Há outros também. O escritor que desafiou o crítico oficial. O dançarino e sua coreografia proibida. O professor que teve coragem de falar a verdade e muitos outros mais. E um a um eles são levados ao pátio. Não conseguem fazer com que dobrem os joelhos. É preciso quebrar suas pernas. Eles devem servir de exemplo. Mas se tornaram exemplo de resistência. E logo me juntarei a eles, mas antes devo assistir a sua morte. Morte bela e triste.

Eu me despeço sem saudade ou mágoa. Tentei viver a vida ao máximo. Bebi quando tive sede, comi quando tive fome. Não tive medo de olhar nos olhos da desconhecida e falar em amor. Abracei forte o amigo, sem receio de ser mal interpretado. Olhei com amor a criança dormindo. Pedi ao jovem que me contasse seu passado e ao velho que me falasse sobre o que esperava do futuro. Tive belas mulheres. Amei algumas, outras foram apenas passatempo. Mas procurei fazer todas felizes.

Mas não foram apenas coisas boas em minha passagem. Menti, enganei e traí. Também semeei a discórdia. Mas todos os meus erros foram frutos das escolhas de um homem livre, ninguém me induziu. Às mulheres que magoei não peço desculpas. A culpa não foi só minha. Um homem não deve passar por uma mulher sem deixar seu corpo e sua alma marcados. Muitas vezes desrespeitei outros homens, mas não peço perdão. Quem consegue controlar o desejo? Nunca mais deixe um homem com menos remorso e mais vontade de ser feliz tomar o que pode ser seu. Mas se foram as marcas que deixei que a tornaram bela aos seus olhos eu não cobro a conta. Aproveite a lição e seja feliz.

Ouço agora o som da cela ao meu lado se abrindo. Estão levando o último antes de mim. Eu quero gritar: Coragem Irmão, isso não é o fim. É o grande começo de tudo. Mas é desnecessário, se ele está aqui é por que sabe disso. Faço uma prece para que tudo seja rápido e chegue logo minha vez. Mas será que há Deus para escutar? Eu já tive certeza que não, mas agora não estou tão seguro. A única coisa que sei é que nesses últimos minutos que faltam eu sou o mais livre de todos os homens. Não conseguiram tirar isso de mim. TUDO EM NOME DA LIBERDADE!

Agora me despeço de todos e caminho para a claridade do pátio. Dizem que no fim de tudo podemos assistir toda a nossa vida passando diante de nossos olhos. Não acredito totalmente nisso. Acho que vemos só aquilo que realmente importou nessa vida. Será que você adivinha o que vejo?
Urubu Rei
Enviado por Urubu Rei em 14/02/2010
Código do texto: T2087313
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