Abutre

Abutre

Eu não via nada com meus olhos. Um abutre instalado em meu ombro, constantemente, via por mim e sua voz era doce, seu hálito, pútrido, mas mesmo assim ele era fiel, via coisas que homens comuns jamais ousariam sonhar com suas mentes perfumadas, porém limitadas. Não via razão para me livrar dele, naquele estado em que eu me encontrava, de permanência diante das incertezas. Eu pude compreender um feixe de luz escarlate púrpura que beirava meu ego. Dentro do meu ser. Por fora das possibilidades dos cinco sentidos. O sentido que me faltara era compensado pelas filosofias mescladas que se difundiam em mim. Meus olhos rapinais, que falava, sim, o abutre é capaz de falar, de duas maneiras inteligentes, usando a linguagem humana com algumas dezenas de palavras essenciais, como também uma espécie de comunicação mental, uma espécie de telepatia especial, entre mim e ele. Devereis revelar o nome dele a ti, nobre leitor? Não, ainda não. Porque se assim eu o fizesse todo o segredo seria revelado e a magia seria perdida, para todo o sempre. O nome dele, como eu ia revelando, antes dessa oportuna observação, da qual, particularmente acho fortemente dispensável, é Vida. A vida que brota de meus ombros, logo após a curva que faz meus músculos ao deixar o inicio do pescoço. E fala comigo. És capaz de entenderdes a veracidade das minhas palavras antigas, tu que me ledes? Eu preferiria... Eu preferia contar contigo, mudo interlocutor, como não conhecerdes a natureza dos abrutes, nem a ciência de seus nobres vôos – Lautréamont o faria com maestria – mas eu me veria encarcerado num átimo que se prolongaria eternamente... Conversemos então, tu e eu, antes que vossos olhos confundais as negras letras nessa alva folha virtual, e, assim, tu se limitarias a um transe desnecessário e sem sentido, que nos levaria a discussões infindáveis sobre o papel do macaco em nossos genes. Pois então: ao abutre. Nobre criatura, poderíeis serdes tanto tu que segue linha a linha como meu precioso amigo, que fala por mim. A pele de seu pescoço é munida de caroços rugosos, sua plumagem, ao toque, é macia, como que embebida por um óleo perfumoso que, ao sol, deveria rutilar escandalosamente. Suas garras e seu bico estraçalham, eu mesmo o ouvi devorar, antes de ter estrangulado em pedaços, sua presa. Seu vôo, sim, eu pude ouvir. Um tom de majestade imperial surgia do movimento de suas asas cuja envergadura produzia um ruído esnobe ao movimento de fechá-las, e quando faziam um ângulo geométrico se rendia a simplicidade. Não sei com que espírito eu o vejo nos sonhos mais sombrios, aquele que poucas vezes nos lembramos ao longo do dia. Aí esta a terceira linguagem a qual compartilhamos: o bater de suas asas à liberdade, assim eu me sinto mais livre. Nunca me prendi a nada. Dizer que eu me aprisionei a ave negra é negar meu sentido perdido, ademais é a extensão do meu Ser. Leitor siga o seguinte julgamento e julgue por si mesmo: poderia o homem evoluir tendo o sentido usurpado positivamente por um animal de outra espécie e bem viver com isso? Que sua opinião seja pura como o mais límpido cristal perdido entre os sonhos embrulhados na neve, e que tenha a extensão de três letras: ou SIM ou NÃO. Toda a verdade recolhida em sonhos. A ciência já não será mais o arauto da humanidade. Haverá um tempo em que a maioria, que será tão pouca, que terão de nutrir o intento, e terão de fazer, de incluir um animal qualquer para reparar as falhas genéticas e\ou acidentais de seus membros alquebrados. A tristeza, então, será erradicada, dando lugar, assim a um novo modo de sentimento partilhado, pois os homens, incapazes de viver em mutualidade com a própria raça, terá a inesperada redenção de se bem relacionar com criaturas inferiores, muitas as quais nós comemos com voracidade. Nunca conheci, ou ouvi falar, em quem tivesse comido abutre... Ficam aqui então minhas reticências finais, pois o sono se apodera de mim, e eu tenho de pensar numa maneira plausível para tirar o pequeno carrasco alado para que eu possa dormir e abrir as portas do mundo em que tenho de viver melancolicamente ao lado dos que se assemelham a mim em tudo, nem a visão que tenho em sonho me conforta. Porque apesar de tudo eu prefiro aquele hálito hostil que é cálido. Assemelham-se em tudo a mim, exceto nas filosofias. [Eles, os sapientes] Que não possuem asas, não para voar, mas para sonhar...

DominiCke Obliterum
Enviado por DominiCke Obliterum em 11/02/2010
Reeditado em 12/02/2010
Código do texto: T2082062
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