O segredo
Quando a conheci, o que mais me chamou a atenção, num primeiro instante, foram os olhos enluarados. Eram de um brilho intenso, em meio às trevas que me circundavam. Ela era pura poesia.
- Oi! Você é o Reinaldo, não é?
O sorriso escancarado, que morava naqueles provocantes lábios, foi a segunda peculiaridade que observei naquela menina tão apaixonantemente diferente.
- Sim. Por quê?
Seco como um deserto. Não retribuí o sorriso.
- Sou Alice - estendeu-me a mão - Cheguei ontem a este colégio
e a professora de História pediu-me para te procurar. Disse que há um trabalho sobre civilizações antigas para ser feito e, como você faltou , ficou sem equipe. Pediu-me que formássemos uma. Nossa, foi difícil te encontrar. Se bem que o colégio é bem grande mesmo. Por que fica por aí, invés de ficar na sala de aula?
- Olhe, Alice, não trabalho em equipe. A professora Inês já sabe disso. Faço todos os trabalhos sozinho. E se não fico em sala de aula, é problema meu.
Qualquer pessoa teria desistido. Mas ela era diferente. Pareceu-me não ter ouvido o que eu disse.
- Que tal irmos à biblioteca amanhã, após o almoço?
Fiquei sem ação. Fiquei, na verdade, encantado. Mas era selvagem. Tinha de ser. Era conhecido por isso. Será que ninguém, naquele maldito colégio, a avisou? E aquela professora sem noção? Será que não pensou nas consequências? Onde já se viu montar equipe comigo alguém tão frágil, tão delicada? Não apertei a mão dela, quando ela me estendeu. Tive medo de quebrá-la. Foi essa a sensação que tive, quando vi aquela mão pequena, perfeita esperando pela minha.
- Moça, não te conheço. Não sou simpático. Não tenho amigos. Não faço trabalhos em equipe. Não sei como soube quem sou. Também não me interessa.
- Então, às duas da tarde, na Biblioteca Pública. Amo aquela biblioteca.
Antes que eu pudesse ou quisesse falar qualquer coisa, ela atravessou a rua, entrou no ônibus e se foi. Fiquei ali parado por alguns minutos. Os outros rapazes e moças passavam por mim e alguns ousavam me olhar e olhar para a mesma direção que eu, tentando entender o que eu fazia ali, parado, em frente ao portão da escola, como se estivesse em transe, mirando para o outro lado da rua, onde não havia mais ninguém.
Acordei de um sonho. Só podia ser isso. Sonhei com aquela maluca.Tinha ido à escola, mas não tinha entrado em sala. Durante os vinte minutos de intervalo, fiquei na quadra, totalmente isolado, desejando que o mundo acabasse e eu com ele. Durante as aulas,estive na biblioteca, como quem pesquisasse. Na verdade, estava com meu mp4, ouvindo minhas músicas e planejando a fuga. Todos sabiam que eu estava no colégio, mas não se preocuparam em me por dentro da sala de aula. Fugiria de casa, daquela cidade, daquela gente que eu desprezava e que certamente também me desprezava. Engraçado como as pessoas podem inexistir, para o resto do mundo, mesmo fazendo parte dele.
A verdade é que não fugi. Pensei naquela garota o dia inteiro. Nem briguei com meu irmãozinho.E quis desesperadamente que o dia terminasse, que a noite não permanecesse por muito tempo e que eu pudesse estar em sala de aula de novo. Se eu tivesse dito isso para alguém que me conhecesse, perguntaria se eu estava com febre.
Assim que entrei na sala, percorri os olhos em todas as direções.Não a encontrei. Esperei passar a primeira aula. Aquela maluca estava atrasada. Mas nada. Não apareceu mesmo. Pensei perguntar para alguém da sala, se a conhecia. Não podia. Não conversava com ninguém.Odiei cada minuto que passou. Lembrei-me então da pesquisa, na biblioteca.
Não agüentei esperar o final da última aula. Saí, sem a permissão do professor de Física. Homem inteligente tanto quanto intransigente. Ainda mais do que eu, na época.
Cheguei em casa e lá estavam meu irmãozinho chorão, minha mãe apavorada com o horário, meu padrasto detestável, tentando fazer meu irmão parar de chorar, e a Ruth, nossa empregada doméstica e braço direito de minha mãe. Senti correr um suor frio pela espinha. Como podiam me olhar daquele jeito? Para eles, eu parecia uma aparição das profundezas do inferno. Ruth e meu irmãozinho eram os únicos que eu ainda via um pouco de simpatia por mim. Ela, pela simplicidade da alma. Ele, pela mesma razão. Criança de quatro anos ainda acredita em Papai Noel...
Engoli o pouco de comida que pus no prato. Saí correndo, com a bolsa nas costas.
-Aonde vai com essa pressa, Rê?
- À biblioteca pública. Tenho um trabalho de história para pesquisar.
- Temos a internet aqui em casa. Por que não pesquisa aqui?
- Tá brincando, mãe? Quero ficar o mais longe possível dessa casa, onde mora só gente maluca. Qualquer motivo é motivo para eu vazar daqui.
- Regina, não quero me meter na educação desse teu filho, mas não acha que já passou da hora de dar um corretivo nele?
- Ah, Antônio, não se meta na educação que dou ao Rê, ouviu? Preocupe-se com a educação do nosso Miguelzinho.
Saí, batendo a porta e deixando, lá dentro, o circo pegar fogo. Antônio não era uma má pessoa. Ao contrário, durante os dez anos de convivência comigo, fez tudo para nos entendermos. Porém, em meu coração, ele era o palhaço que queria substituir meu pai. E isso eu não iria permitir.
A nossa relação tinha piorado consideravelmente depois que minha mãe resolveu ser mãe de novo. Mas eu sempre amei muito meu irmão, mesmo sem demonstrações públicas de afeto. Era sempre às escondidas. Ruth, vez ou outra, me pegava brincando com ele. Eu a proibia de dizer algo à minha mãe.Ela balançava a cabeça e sorria.
Cheguei à biblioteca. Estava praticamente vazia aquela hora. Procurei por Alice em todos os corredores e mesas. Nada. Sentei-me e fiquei esperando por um tempo. Será que aconteceu algo com ela? Ela não foi ao colégio também. Resolvi esperar mais alguns minutos. Coincidência ou não, a bibliotecária me chamou e perguntou se havia sido eu que tinha pedido, há pouco, livros sobre civilizações antigas, especificamente sobre os Incas. Eu fiquei ali parado por alguns segundos, olhando para ela, totalmente desnorteado. Os livros, dos quais precisava, estavam ali à minha frente.
- Sim, são esses, disse. Peguei-os e fui sentar-me em um lugar isolado, do jeito que sempre fazia. Comecei a pesquisa. Alice, se quisesse, que viesse depois pesquisar.
Li, pesquisei. Era tudo tão interessante. Os livros eram mais interessantes que as pessoas. Eu acreditava nisso. Li com grande interesse, mas estava muito cansado. A espectativa de encontrar Alice, naquele dia, fez-me dormir muito mal, acordando o tempo todo.
Eu estava, além de cansado, muito aborrecido com aquela menina docemente atrevida. Ela iria me pagar. Certamente quis me fazer de bobo.
- Oi, Reinaldo! Cheguei.
_ Até que enfim! Senta aí. Já li e pesquisei muita coisa. Toma esses livros e vá lendo aí. Não pense que, sendo em dupla, farei tudo sozinho e porei seu nome no trabalho. E por que não foi ao colégio hoje? Fui lá somente para te ver... quero dizer... falar com você sobre o trabalho, os detalhes, entende?
Foi então que percebi que Alice brilhava. Ela estava ali na minha frente, em pé, sorrindo e brilhando. Eu não acreditei no que vi. Cheguei a esfregar os olhos. Ela sentou-se à minha frente e eu, mudo, fiquei ali esperando. Não disse nenhuma palavra, apenas sorria e, aos poucos, com seu brilho, ía iluminando a minha alma. Naquele momento, senti tanta emoção, tanto amor, que toda a mágoa, todo o rancor foram se dissipando do meu coração. Senti paz, muita paz.Foi algo indescritível o que vivi naqueles preciosos instantes. Algo que guardei sigilosamente até agora. Não contei a ninguém, nunca antes. E a transformação que ocorreu, em mim, foi evidente. Dia após dia, meu ser era iluminado pela chama daquela tarde. Teria sido um sonho? Um cochilo, pelo cansaço que tomara conta de mim? Não sei. Nunca soube. O fato é que vi Alice, muitas vezes, em meus sonhos, ou passando por mim, em alguma rua da cidade, sempre a sorrir. Sempre se fazendo presente, quer fossem em momentos de pura felicidade, quer fossem em momentos de grande dor e amargura. Nunca soube quem era. Nunca precisei saber. No meu íntimo,ela era simplesmente o meu anjo, que resolveu se revelar, para que eu pudesse, enfim, me encontrar.