MORTE AO DITADOR - PRIMEIRA PARTE

PRIMEIRA PARTE - O CARA

O Cara colocou os dois cotovelos sobre a mesa e bebeu devagar o liquido amarelado que o sujeito derramou dentro do copo, enchendo-o até ao meio. Tossiu. Teve vontade de cuspir em um dos cantos, mas não o fez em respeito as damas presentes. Ele olhou todos ao redor, o Cara tem olhos azuis, muito azuis. Olha para o relógio no pulso, comprado de um camelô há duas semanas atrás. Porcaria, já está com defeito, parado.

Ele tem um encontro, uma reunião de negócios, está matando o tempo nesse bar de quinta. Toma mais um gole. Mais uma olhada ao redor. Coça o bigode. O Cara tem bigodes enormes, enormes e negros. Nas paredes existem dois retratos em tamanho natural do Ditador. O Ditador também tem bigodes negros. O Ditador também tem olhos muito azuis.

O Cara espera o bar esvaziar. As mulheres presentes saem aos poucos, uma de cada vez, todas elas com roupas da moda, todas nas mesmas cores, as poucas cores que o governo ainda permite, apenas as poucas cores da bandeira podem ser usadas, o Cara teve vontade de cupir mais uma vez. Tirou o relógio do pulso e deixou sobre o balcão. Tirou a arma de dentro da calça e deu dois tiros no homem por detrás do balcão, deu dois tiros em cada uma das pessoas dentro do bar, apenas não atirou em todos por que as balas se acabaram. Deixou a arma sobre o balcão junto com o relógio, deixou para que os agentes da policia do Ditador encontrassem as provas de sua presença ali.

O Cara virou as costas e saiu do bar.

Focinho de Anta puxou as cadeiras, mostrou os lugares, todos foram se sentando, a fumaça de tantos cigarros acesos deixava uma nuvem pegajosa dentro da sala. Focinho de Anta tossiu, sua pele avermelhada ficou ainda mais corada quando começou a tossir em meio a tanta fumaça. Focinho de Anta era descendente de um grande pajé, sempre citava esse pormenor de seu passado distante, por isso ainda concervava o codnome indigena.

Ao redor de Focinho de Anta sentaram-se O Matador Sorridente, O Tatuado, O Vaqueiro, O Abutre, O Tolo e O Cara. Todos fumavam, apenas o Cara tinha olhos azuis, todos os outros estavam usando óculos escuros.

- Deu no rádio hoje de manhã, que os óculos escuros estão proibidos. – disse Focinho de Anta.

- Mais proibições. – Resmungou o Tolo.

O Cara não disse nada. Apenas deu mais tragada e fitou Focinho de Anta.

- Morte a todas as proibições. – Gritou o Matador Sorridente dando um murro na mesa.

A campainha tocou antes que alguém pudesse dizer alguma coisa.

Fulano Dois Canos era procurado em 20 Estados, não ligava para o retrato seu que colocavam todas as noites na televisão do Governo. Os dizeres de filme B, dizendo algo como “quem souber o paradeiro desse meliante, favor entrar em contado com a delegacia da PDD mais próxima de sua residência.” E mais meia dúzia de insultos a imagem de Fulano Dois Canos, que ganhara esse apelido ainda na adolescência quando costumava cometer seus crimes com uma velha espingarda de dois canos, herança do avô materno, que o havia instruído na arte do tiro certeiro.

Fulano caminhava sorrateiro por detrás da caixa de lixo podia ver nitidamente o agente da PDD fumando encostado na viatura bege, uma das poucas cores que o governo ainda permitia dentro das fronteiras do país. O agente fumava prazerosamente e nem soube o que o atingiu quando Fulano Dois Canos puxou o gatilho. Ele havia aprendido com o Matador Sorridente a sempre sorrir depois que o alvo caísse morto, no entanto, não conseguia, apenas cuspia no chão, nojo do que acabara de fazer, era só.

Acendeu um cigarro, talvez da mesma marca que o agente fumava antes de ser alvejado pelo tiro certeiro na testa, Fulano nunca errava, fosse qual fosse a distância. Aos poucos foram se juntando pessoas ao redor do corpo do agente caído, duas viaturas se aproximaram com as sirenes gritando. Fulano jogou o cigarro no chão, o apagou com o solado da bota e então caminhou, respirou fundo com aquela sensação de missão cumprida que sempre o tomava quando eliminava um agente da PDD.

Focinho de Anta abriu a porta com a arma em riste, detestava que atrapalhassem a reunião semanal. Max Três Oitão entrou, sobretudo de couro igual aqueles de filmes europeus que passavam antigamente de madrugada na TV antes de o Partido ter dado o Golpe e tomado o Governo. Agora a TV só transmitia discursos do Ditador, a cada hora uma nova lei, um novo decreto, uma nova medida, tudo em nome da segurança nacional, dizia o narrador, um homem sem rosto que se tornou odiado nos quatro cantos do país, mata-lo estava na cabeça de todos nessa sala, também na de Max Três Oitão que acabara de chegar.

- Como vão colegas matadores?

- Ninguém aqui é matador Max. – retrucou o Matador Sorridente.

- Somos justiceiros. – emendou o Abutre.

- Limpamos as ruas da merda que o Governo anda fazendo. – disse o Vaqueiro.

O cara mais uma vez não disse nada, apenas olhou para todos aqueles homens de óculos escuros sentados ao redor de uma mesa.

Dois agentes desceram da viatura, farda bege, armas na cintura, cigarros acesos, Agente A e Agente B, esses eram os codinomes, a instituição havia perdido a identidade, cada individuo agora era um só e todos eram a PDD, era isso que ensinavam agora na academia de polícia, era isso que insuflava a alma dos cadetes recém formados. Agente A entrou no bar, viu os corpos caídos, viu o sangue espalhado, voltou para perto da viatura se debruçou e vomitou, odiava sangue, odiava essa guerra das ruas, sabia que podia ser o próximo agente da PDD a ser alvejado por um desses lunáticos.

O Agente B deu risada.

- Seu bicha, com nojinho do sangue, seu boiola.

Agente B cuspiu no chão e caminhou com passos duros para dentro do bar. Viu os corpos, viu o sangue espalhados para todos os campos, por um segundo também sentiu vontade de vomitar, mas não podia se deixar vencer, ele era um agente de elite da PDD (Policia Do Ditador), almejava há dois anos uma promoção, subir para o escalação de cima e não mais ser obrigado a passar seus dias vendo corpos, sangue e colegas agente mortos, queria estar entre os burocratas dando ordens, ordenando execuções, mas isso não aconteceria se vomitasse cada vez que visse uma cadáver. Engoliu o nojo e caminhou até o balcão.

O Agente B conhecia bem os inimigos do Governo, sabia como pensavam, como funcionavam suas cabeças psicóticas, acreditavam em uma revolução, uma nova revolução, achavam ser possível depor o governo atual através da força bruta, pensavam ser possível instituir uma nova ordem, um novo sistema, não percebiam que tudo já havia ficado para trás, capitalismo, socialismo, comunismo, isso já não existia, já não era possível, uma nova ordem mundial estava se estabelecendo aos poucos, não era nem mesmo ditadura, era algo novo, diferente, ou se estava a seu favor ou contra ela, e essa nova ordem era impiedosa, não tinha compaixão, era feita por um novo tipo de homem, um ser sem alma, sem coração, sem razão... Agente B respirou fundo e se pos a colher as evidências.

O Agente A ainda vomitava apoiado na viatura.

Focinho de Anta tomou mais uma vez a palavra.

- Nós ainda continuaremos desunidos? Ainda continuaremos cada um de nós em nossa cruzada particular, solitários, sozinhos? Nós ainda continuaremos a caminhar sem organização, correr cada um para um lado, cada um com uma arma na mão? Não vejo lógica em tudo isso, não chegaremos a lugar algum, não alcançaremos sucesso nenhum nisso e o Governo continuara a impor sua mão de ferro sobre todos nós, vai continuar decidindo qual a cor da roupa que devemos usar, qual comida nos iremos comer e que hora nos iremos a comer, ou beber, ou dormir, isso tem que ter um fim. Nós já estamos ficando velhos, já estamos nos cansando de tantos anos de guerra, tantos anos de proibições, eu já não agüento mais.

Ninguém disse nada.

Focinho de Anta se levantou e saiu da sala. Todos os outros, um de cada vez fizeram o mesmo, apenas O Cara não saiu, acendeu mais um cigarro e continuou sentado na mesma cadeira.

Fulano Dois Canos chegou em casa às 10 horas, exatamente no horário estabelecido pelo Governo, o toque de recolher era anunciado todas as noites nesse mesmo horário. Abriu a geladeira e pegou a última cerveja que restava. Estava difícil encontrar uma boa cerveja hoje em dia, pensou, a maioria era falsificada, desde a instituição da Lei Seca há dois anos era proibida a fabricação, a venda e o consumo de cerveja no país. Fulano conhecia alguns bons contrabandistas que vendiam uma ótima cerveja, mas estava ficando cada vez mais cara, já que vinha toda da Europa, a América toda já estava tomada pela mesma Ditadura. PDD controlava tudo, os portos, os aeroportos, as rodovias.

Tomou a cerveja em pequenos goles, saboreando ao máximo, degustando cada gota do malte, poderia ficar, semanas e até meses sem tomar uma novamente, estava muito difícil, e as bebidas liberadas pelo governo não eram suas preferidas, tudo tinha gosto de nada, somente álcool.

Batidas na porta. Fulano pegou a velha espingarda herdada do avô e caminhou em direção a porta.

- Quem é?

- Sou eu, o Max.

Fulano abriu a porta e Max Três Oitão entrou no quarto.

- Tomando cerveja? Há dois meses não sei o que é isso.

- Tome um gole. – Fulano Dois Canos estende a garrafa.

Max Três Oitão toma toda a cerveja de um gole só.

- Ando por ai depois das 10 horas? – Pergunta Fulano.

- Pois é, no caminho pra cá eliminei dois Agentes.

- Hoje eliminei um só.

- A noite ainda não acabou.

- Eu estou cansado Max, estou de saco cheio já, estou com nojo de tudo isso.

- Sei como é.

Fulano não diz nada, abre a geladeira e pega um pedaço de queijo, morde.

- Hoje estive com Focinho de Anta.

- Então?

- Todos estão cansados também, Fulano.

- Vão desistir então?

- Focinho de Anta quer que todos nós trabalhemos unidos.

- Já tentamos isso anos atrás e não deu certo

Max caminha até a geladeira e pega também um pedaço de queijo.

A arma estava sobre o balcão. Teve certeza do culpado. O Cara sempre deixava a arma no local do crime, para que a PDD soubesse que era ele, mas o Agente B não entendeu o porquê dessa vez, O Cara era como os outros matava apenas Agentes da Polícia Do Ditador, mas aqueles no bar eram todos civis, isso era estranho. O que estaria acontecendo agora? O que se passava pela cabeça do Cara? O que estaria planejando? O que significavam todas aquelas mortes?

Agente B sobe as escadas do prédio, três andares, a droga do elevador está quebrado, a terceira vez que dá defeito esse mês. Ele some devagar, pensa nos motivos que levaram O Cara a matar tantos civis, não chega à conclusão alguma.

Entra no apartamento e em cinco minutos está de banho tomado, limite máximo que pode durar um banho no novo regime, acende um outro cigarro, abre o cofre escondido atrás de um quadro. Lá esta, o Dossiê.

Um trecho lhe chamou atenção.

O Cara

Verdadeira identidade: desconhecida.

Paradeiro atual: desconhecido.

Local de nascimento: desconhecido

Pais: desconhecidos.

“Conhecido na crônica policial como O Cara, algumas testemunhas relataram incrível semelhança com O Ditador. São atribuídos a esse individuo a autoria de mais de cem execuções de Agentes da PDD.”

CONTINUA.....

Odair J Alves
Enviado por Odair J Alves em 03/02/2010
Código do texto: T2066897
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