Os Segredos de Jamilla

O Relógio da Família.

A brisa e tão somente a ela, a agradável brisa que me fazia eufórica, com vontade de sorrir e soltar a fita roxa de cetim que entrelaça os meus cabelos.

Eu, Nathaliane, Nathy para os mais íntimos sempre gostei de me sentir assim...livre apenas, mas bem justa e corriqueira quando era a respeito das minhas obrigações.

Papa era severo. Um homem extremamente rude e exigente, mas que acima de tudo me amava e adorava não esconder isso diante dos olhos de ninguém.

Foi nas férias de fim de ano que eu e ele viajamos para a França, aproveitamos a neve e abusamos das bebidas quentes. Eu sempre buscava o chocolate quente mais doce que houvesse. Papa pelo contrário gostava do café expresso sem açúcar.

Voltamos de lá lotados de roupas de frio nas malas e várias fotos na câmera fotográfica. Papa tinha muitos compromissos com o serviço e com umas reuniões de um grupo das quais não me contava nada. Acima de tudo, a casa estava vazia e não é muito aconselhável que assim fique por mais de duas semanas...

Depois de horas viajando chegamos até a nossa formosa casa, e os pinheiros frondosos me davam novamente boas vindas. Eram daqueles que ficavam bem em frente às janelas. Como era bom se sentir em casa, como era bom dizer: “Olá Alemanha!”.

Desci da Pick Up e fui retirar minhas bagagens do tamborete traseiro do carro. E com um repentino gesto, papa me surpreendera novamente, como sempre fazia!

-Isto é para você querida! – disse retirando do bolso do casaco um pequeno embrulho.

Não consegui falar nada. Era o relógio de bolso que eu tanto gostava e que vinha sendo passado de geração a geração na minha família! Ele tinha inscrições minuciosas e era revestido de prata italiana.

- Papa, Obrigada...

- Ora Nathy, quando foi que eu falhei com uma promessa, ham? – disse me dando um olhar fugitivo.

A vida era muito boa comigo e eu agradecia todos os dias por respirar, pelos alimentos que chegavam à mesa. Feliz, sim eu era feliz, mas uma coisa afetava o meu íntimo quando eu estava sentada á escrivaninha do meu quarto. A foto de mamãe no porta-retratos. Papa me contara que ela nos abandonou quando eu tinha apenas dois anos. Papa não sabe explicar, papa não sabe o porquê.

Foi então que eu acordei desses pensamentos absortos que me cegavam. Papa havia me gritado, dizia que a porta estava destrancada. Corri até ele então...poderia ter sido alguém que saqueou a nossa casa?

Depois daquele dia, nossa vida nunca mais foi a mesma.

Jamilla

Nossa vida jamais fora igual depois daquele incidente. Ao perceber que a porta estava aberta, Papa entrou veloz. Foi então que me chamou. Quando entrei na sala já não a mais reconhecia como parte de minha casa. Tudo estava em desordem: a mesinha do centro estava revirada e as pernas estavam para cima, os vidros estavam quebrados, sofás rasgados como se alguém tivesse o desfiado com uma faca, por fim também haviam estantes caídas e plumas por todo o ambiente.

Papa deu um grito e soltou as bolsas no chão. Quem poderia ter feito aquilo?

Sem esperar nada atravessei aquela fuzarca com grande velocidade e subi as escadas que levavam ao andar dos quartos. Havia uma mancha vermelha sobre minha porta branca. O quarto em si mesmo não fora vasculhado, apesar de existirem marcas de que alguém havia ficado ali, sentado e até mesmo tirado alguns livros do lugar. Não faltava nada, nenhuma peça, absolutamente nada. O mesmo aconteceu com o quarto de Papa.

O que mais me surpreendeu foi que ao entrar no banheiro havia um espelho que mais cedo não tinha aquelas inscrições feitas a batom vermelho: “Morra Hanz, voltei para atormentá-lo”.

Esta ameaça feita à Papa me arrepiou a espinha.

No fim da tarde a polícia estava lá fora fazendo o inquérito até que eu e Papa arrumamos o que conseguimos lá em baixo.

Dois dias após isso um representante do Jamilla apareceu em nossa casa. Segundo Papa, era o diretor Kant, um homem que aparentemente tinha seus sessenta anos, corpulento e de pescoço grosso revestido por uma grossa barba que já rareava densa.

Diretor fora como ele havia se apresentado. Mas como Jamilla era uma espécie de sociedade secreta ele era o grão-mestre ou algo assim...

Kant investigou e disse a Papa que havia fortes vestígios de forças espirituais agindo sobre a casa. Disse também que providenciaria algumas coisas para que ficássemos bem. Ele era alguém em quem podíamos realmente confiar, já que tinha experiência com esses tipos de casos em Jamilla.

Papa e eu passamos mais duas noites muito estranhas: as portas rangiam, o vento titilava as coisas lá em baixo, os espelhos refletiam luzes sem foco de direção da onde vinham.

Foi então que o diretor Kant havia dito que o sacerdote da sociedade estava livre para executar uma sessão espiritual naquela noite.

A partir daí, o quebra-cabeça começou a ser montado a meu ver.

A Carta-Mistério

Absolutamente eu nunca fui alguém que acreditasse neste tipo de fenômenos paranormais, mas foi incrível ver que a sacerdotisa que auxiliava o sacerdote Berigo se remexer e dizer “Hanz, você tem de saber” ou “Não descansarei enquanto você não estiver do mesmo lado que eu”. Havia também uma mesinha com uma bola de cristal bem ao centro do círculo que fazíamos. Era espantoso vê-los flutuar e brilhar.

Foi então que Berigo fez com que déssemos uma pausa na conexão com o espírito. Ao desconectarmos nossas mãos, a mesa do centro parou de flutuar e a luz que provinha da bola de cristal se apagou. Ficou praticamente provado que mamãe estava morta e era ela quem estava tentando atormentar as razões de papa.

- Papa, isto não tem sentido algum, nem ao menos sabemos se mamãe está realmente morta! – disse eu enquanto abria a porta de casa e já pisava a soleira.

- Isto é mais que evidente, minha filha, evidente!

Papa e eu brigamos naquela noite. Fora algo bastante sério.

Fui a uma segunda sessão espiritual sem saber que tinha lá estado. Papa disse que no meio da madrugada eu fui tomada por um espírito que dizia coisas terríveis e me fazia contorcer, eu não tinha controle das palavras sujas que saiam de minha boa.

Foi nesta mesma semana então que papa recebera uma carta misteriosa com a caligrafia muito semelhante à de mamãe. As inscrições pediam que ele fosse até as montanhas do Arenito de Elba.

Papa achou tudo aquilo muito estranho. O diretor Kant aconselhou que Papa fosse mesmo ao tal local, que investigasse tudo com cautela.

Nossa desavença acabou depois que papa me deu a notícia sobre tudo isso. Eu quase o obriguei a me levar com ele afirmando que sem ele daquela maneira eu não poderia viver. Foi a forma que encontrei de me redimir.

Partimos então pela manhã, preparados, ajeitando a Pick Up reservando mantimentos e ferramentas. Papa não queria que eu corresse riscos.

Chegamos á orla do Arenito do Elba por volta das duas da tarde. Montamos um acampamento e descansamos. Subimos algumas poucas horas depois até que nos deparamos com um velho casebre abandonado. Fazia bastante frio, o casebre cheirava a mofo e madeira embolorada. Eu mal poderia imaginar o mal que nos espreitava, o terror que eu estaria sentido dalí a alguns poucos minutos. Foi então que a noite sobrepujou o crepúsculo e as bestas da noite surgiram cercando nosso casebre aparentemente seguro. Buscavam por papa...era como se sentissem seu cheiro ao longe. Queriam o sangue dele.

A última coisa que me lembro de papa ter feito por mim naquele instante foi me amordaçar e prender meus membros com tiras de vime, colocar-me dentro de um saco velho e me esconder dentro de um armário que em toda sua relíquia já caia aos pedaços. Olhou nos meus olhos e com um tom sincero me disse:

- Eu voltarei pra te buscar...confia no Papa? Quando foi que lhe quebrei uma promessa?

Eu chorei. Deu tempo para que Papa encostasse a porta do armário. Chorei mais ainda quando vi por uma fresta a porta se abrir. Silhuetas monstruosamente robustas agarraram papa pelos membros inferiores. Eu chorava muito, e a bagunça, a escuridão em que me encontrava e a companhia de algumas baratas não me deixaram entender nada. Deu para se ouvir um estatelar e dali então não vi mais nada...

A escuridão que não era a do quarto me tragara por um tempo que eu julgava precioso...o tempo da vida de Papa.

E pela primeira vez, Papa quebrara uma promessa.

O Casebre

Adormeci de medo. Acordei tonta, lembrei de tudo e chorei. Dei investidas fortes e consegui sair do saco. Cortei as tiras de vime em um pedacinho de pedra lascada que estava na parede. Esta era a vantagem de se estar em um casebre velho. Corri até lá fora, Papa estava em perigo, eu estava só a partir de agora...papa me abandonara, só podia estar morto, morto!

Enxuguei minhas lágrimas como quem toma fôlego para saltar de pára-quedas e me preparei para tudo. Peguei ás pressas o machado de Papa no tamborete do carro, já que eu não tinha encontrado o facão.

Subi a montanha á luz de uma velha lamparina de querosene que encontrei jogada pelo casebre. Eu me encontrava em um breu. Não conseguia enxergar nem as minhas próprias idéias. O que conseguia ver eram algumas pedras e minha sombra.

Segui os rastros que cada vez mais me levavam para dentro da floresta das colinas. Eu subia, subia, subia...

No caminho encontrei algo que me tirou a gota de fé que me restara. Vi algo que me deu pânico, tanto pânico que não conseguia gritar. Estatelado no chão se encontrava um braço humano decepado. Ainda pulsava com alguns últimos estímulos de neurônios. Arrancaram o braço de Papa!

Segui os rastros tão enjoada que nem mais reparei nos detalhes minúsculos da cena. O terror fez comigo uma aliança naquele momento.

Apenas segui os rastros de sangue até me deparar com um casebre muito semelhante ao que eu estava. A diferença é que este tinha luzes acesas e um cheiro muito forte de mirra pelo ar. Deparei-me então com duas feiticeiras!

A Promessa

Eram duas feiticeiras. Uma velha e uma linda jovem com o rosto encoberto. Não me disseram nenhuma palavra até que partiram para cima de mim. O cheiro daquelas ervas me estonteava, a moça me agarrou pelas costas, deixando minhas mãos presas na parte de trás. A velha desembainhou uma adaga afiada. Vi o brilho da faca e quando dei por mim ela estava estatelada no meu ombro. Doía, mas algo estava errado, a bruxa velha mirara no meu peito, mas acertara apenas meu ombro. Eu sangrava, tudo doía...a lâmina era gelada dentro do meu corpo como se nós fossemos apenas uma, um corpo só. Eu sangrava e a lâmina sangrava comigo. Pegava meu sangue emprestado como se o quisesse para chorar.

Só depois de algum tempo que percebi que a jovem bruxa me puxara para trás tentando me desviar do golpe. Pude ver seu rosto por trás do véu. Era Katina, a sacerdotisa de Jamilla. Ela salvou minha vida.

Ela puxou então o machado que estava no chão e conseguiu acertar o braço da bruxa velha, decepando-o. Logo depois puxou a adaga das mãos dela e cravou no coração da própria velha.

- Já havia um bom tempo que vinha desconfiando de certas deslealdades no Jamilla. – disse ela enquanto me fazia curativos e os atava com a fita roxa que prendia meus cabelos – Logo mais á frente poderemos alcançar o seu pai. O pivô de tudo isso é o grão-mestre.

Eu não estava acreditando. Tudo aquilo que me dizia formava um bolo de pensamentos na cabeça. O diretor Kant era um impostor. Tinha nos traído bolando esta emboscada.

Subimos rapidamente as trilhas até que nos deparamos com uma clareira muito espaçosa que terminava em um imenso paredão de pedras. No centro dele havia um oco...algo que lembrava precariamente uma caverna. Não demorou para que saísse de lá uma silhueta de massa corpulenta, como se fosse um monstro.

- Foi um ótimo jogo, não é Nathaliane? Seu pai está morto lá dentro agora. Como é bom um jogo em que a gente ganha não é?

Era uma voz conhecida para mim, mas não era a de Kant. Era Berigo, dentro de algo que parecia uma espécie de fantasia de monstro.

Katina e eu estávamos equivocadas. O dono da ganância era o sacerdote Berigo.

-Assim como matei sua mãe, matei seu pai. Foi tão gostoso armar todos aqueles truques na casa de vocês, copiar a caligrafia de sua mãe numa cartinha misteriosa, implantar com hipnose em você aquele falso espírito, e o melhor de tudo: ver seu pai cair em um golpe destes.

Eu estava em choque. Ele era responsável pela morte de mamãe. O homem vestido de monstro bem a minha frente, ou melhor, o monstro vestido de homem.

Eu queria ir até a caverna e acudir papa, mas três homens vestidos do mesmo jeito que Berigo me impediram. Katina pegou o machado no chão e partiu com o intuito de me defender.

- Chega de truques Berigo. Vou lhe mostrar o que é magia de verdade, e já devia ter lhe mostrado isso a um bom tempo! – alguém vociferou ás minhas costas.

Com um movimento sutil algumas aves noturnas apareceram e em bando atacaram os monstros que restavam. Era o diretor Kant que viera nos socorrer.

Somente Berigo se manteve de pé. Nenhuma ave o atacara, elas pareciam evitá-lo.

Katina tentou atacá-lo por traz, mas não fora lá uma boa idéia. Berigo atirou contra ela uma lâmina envenenada. Ela caiu suave como quem cai em um passo de balé, atingida no peito.

Berigo não se conteve. Mantinha uma gargalhada baixa e contínua como quem ri para reafirmar as condições de seu ego. Logo parou, logo começara a estatelar os olhos, a cuspir sangue pela boca e deixar ver a mesma lâmina envenenada que matara Katina lhe atravessara as costas.

Vi embaçado a imagem de alguém que se apoiava nas paredes da caverna, numa posição como quem acabara de fazer uma tremenda força para atirar algo. Era Papa, ele matara Berigo, ele mesmo! Por Deus, estava inteiro. Tinha alguns ferimentos pelo corpo, mas não lhe faltava nenhum membro.

De quem era o braço que vi arrancado no caminho então?

Estancamos as feridas de Papa e logo encaminhamos o caso à polícia. Quando estávamos voltando na ambulância, eu sentada ao lado de Kant que me ajudava a ficar do lado de Papa naquela maca, Conversei muitas coisas com Papa e ele me explicara que havia decepado o braço de um dos homens lá em baixo, e que havia descoberto que mamãe fugira de casa porque era ameaçada de morte por Berigo. Ele dizia que se ela não fizesse o que mandava, mataria a mim e a papa.

Foi um grande erro da parte de mamãe pensar que ele conseguiria esta proeza, mas foi um erro por amor, um erro para nos proteger, algo que qualquer mãe faria por sua família, então, simplesmente não fora um erro.

Ao fim de tudo, quando já estávamos no hospital, Papa me puxou para seu colo, deitado na maca e me sussurrou no ouvido:

- Eu não sei se ficarei bem...

- Papa! Por favor...

- Veja como estou ferido, Nathy! – chorou.

- O senhor ficará bom, Papa. Eu prometo! – enxuguei as pérolas que escorriam de seu rosto grosso.

-Promete?

-Quando foi que lhe quebrei uma promessa?- Sorri chorando.

Papa cumprira sua promessa e voltara. Eu também cumpri a minha de asas abertas.