A ÁRVORE DE MEU AMOR
 
Estavam os jovens aglomerando-se diante do Teatro
Municipal. Rapazes e moças em roupas esportivas,
entusiasmados, alguns eufóricos, portavam faixas e
cartazes com palavras sobre ecologia.
 
— Isso de defender o meio ambiente virou moda –
comentou o taxista – . Até minha filha! Tem oito anos e
já vira o narizinho me acusando de usar um carro
poluindo as ruas. Vou acabar mudando de profissão,
a senhora acredita?
 
— Acredito. Eu ainda acredito.
 
Reluzindo ao sol da manhã o táxi passou logo depois
por ruas e alamedas centrais até estacionar junto ao
meio-fio onde ela finalmente o dispensou. Nesse
trajeto, que não foi muito longo, o taxista disse a ela
que aqueles jovens sairiam em caravanas para uma
gincana sob a orientação de ecologistas. A gincana
incluía etapas nas quais os participantes retirariam
detritos existentes em várzeas e riachos próximos.
 
Minutos depois ela foi recebida no consultório. Estava
elegante como sempre. Bem vestida e bem penteada.
O médico a saudou:
 
— E então? Como se sente?
 
— Com saudades, doutor. Eu estou me derretendo de
saudades.
 
Foi preciso aguardar um pouco; ela estava chorando.
Constrangida, mas chorando.
 
— Do ponto de vista clinico a senhora está bem – disse
o médico - Talvez devêssemos examinar o emocional.
A senhora então está com saudades?
 
— Saudades, doutor. Saudades de minha vida inteira.
De amigas, de amigos, de muitos anos de giro nessa
imensa roda da vida. Saudades.
 
— De um amor?
 
— É! Saudades de um amor.
 
— Sou um clinico geral. Pouco poderia ajudá-la além
de ouvir. Quer me contar?
 
— O senhor é muito generoso. Como posso contar?
Nem eu mesma sei.
 
— Talvez fosse bom falar sobre o que a emociona
assim. Vamos começar do começo. O que foi que
aconteceu?
 
— Tantas coisas. Aconteceram tantas coisas.
 
— E o que foi que lhe trouxe à mente essas coisas
todas?
 
— Não sei! Acho que estou fragilizada. Emocionei-me
ao ver os jovens em frente ao Teatro Municipal.
Trouxeram de volta a minha juventude.
 
— Que bom! Quer me contar?
 
— Ah! Doutor. Foi um tempo inesquecível! Não havia
esse termo ‘ecologia’, mas participávamos de gincanas
e desses movimentos tendo em vista o reflorestamento.
Éramos jovens, já lhe contei. Pois é, éramos. Quase
todas as minhas amigas namoravam ou eram noivas.
Eu namorava um rapaz que visivelmente me adorava.
 
— A senhora gostava dele?
 
— Eu era menina. Sem muito juízo.
 
— Gostava dele?
 
— Gostava. Não sabia, mas gostava. Frequentemente
fugia ao ver que ele se aproximava de minha casa. Eu
era assim.
 
— E o reflorestamento?
 
— Aconteceu! – ela abriu um sorriso constrangido num
rosto molhado com as lágrimas que desciam pondo a
maquiagem em risco.
 
— Era como num jogo, doutor. Cada casal plantou uma
árvore e deveria cuidar dela ao longo de alguns anos.
As coisas aconteceram assim. Exatamente assim.
 
— A senhora e ele plantaram uma árvore. A senhora e
ele, assim como suas amigas e respectivos namorados
ou noivos.
 
— Foi. Foi assim mesmo. Ao cabo de algum tempo
algumas de minhas amigas faziam questão de nos
constranger porque suas plantas germinavam
saudáveis. Eu e meu namorado procurávamos
entender o que estaria acontecendo à nossa árvore
cuja cova foi se transformando em um pequeno prato
de terra escura, afundando.
 
— Não vingou?
 
— Não! Nossa árvore estranhamente se negou a reagir
conforme a natureza. E foi por ter acontecido assim
que eu descobri o íntimo de meu namorado. Ele se
preocupou não com a árvore, mas comigo. Cuidava
de mim como se eu fosse um raminho de flor. Eu nunca
soube dizer se ele ainda acreditava na germinação de
nossa árvore, mas também, nunca consegui demovê-
lo da idéia de cuidarmos juntos daquele pedacinho de
chão que ao invés de produzir um galhinho verde só
fazia afundar mais e mais. Ele sempre dizia: ‘é a árvore
do meu amor e eu vou cuidar dela’.
 
— A senhora se sentiu fracassada?
 
— Eu não estava ligando. Nossa árvore não existia a
não ser nas brincadeiras de mau gosto de minhas
amigas e na fé de meu namorado. Ele fazia questão
de cuidar daquele pequeno fosso. Creio que imaginava
ser necessário me animar. Ao longo do tempo ele foi
sempre muito doce. Sempre preocupado com o meu
bem estar, sempre atendo às alterações de meu estado
de saúde. E eu me apaixonei por ele. Ele me fez mulher
e...
 
— E...
 
— E eu, depois de algum tempo, gostando
desesperadamente dele, concluí que nossa árvore fora
um logro. O maior engano de minha vida. Eu o perdi,
doutor. Nossos caminhos se separaram.
 
— Isso acontece para a maioria das pessoas.
Raramente a moça se casa com o primeiro namorado.
 
— Eu sei. Algumas de minhas amigas se casaram. Nem
todas fizeram casamentos felizes. Por incrível que
pareça suas árvores morreram depois de jovens ou
mesmo adultas. Árvores que surgiram saudáveis e
alcançaram altura. De repente definharam, secaram,
morreram.
 
— A senhora relaciona...
 
— Não há como não relacionar a saúde daquelas
árvores com as coisas que aconteceram às jovens que
as plantaram. Aquelas plantadas por casais cujos
casamentos prosperaram estão vivas e produzem
frutos. Foram muitas as coincidências. Não sou a única
a acreditar nessa relação.
 
— Como sabe?
 
— Eu sei! Os botânicos não conseguem explicar as
mortes daquelas árvores plantadas por casais cujo
namoro, noivado ou casamento desabou.
 
Ela fez uma pausa. Secou os olhos. Assoou o nariz.
 
— Nossos caminhos seguiram rotas paralelas por um
período muito longo. Foram tantos os anos sem nem
mesmo uma notícia dele.
 
Chorando novamente ela desabafou:
 
— Eu precisei tocar a minha vida, carregar as minhas
pedras, vibrar com os fugazes momentos de alegria
que a vida me ofertou. Eu não era feliz, nem infeliz.
Eu era uma vaga vontade de existir. Eu não tinha tido
outra experiência que não fosse me resignar com o
que estava no roteiro de meu destino. Era frustrante
voltar para casa, notar que a vida não tinha sabor.
 
— E então...
 
— E então, houve um fato inexplicável.
 
— Inexplicável?
 
— A nossa árvore vingou. Por mais de quarenta anos
insistiu em permanecer como energia latente. Por mais
de quarenta anos, doutor. E então, deixou de ser um
pequeno sulco afundado na terra para se transformar
em uma vida extremamente vigorosa que atualmente
fornece sombra reconfortante. De seus galhos
gigantescos descem cordas e correntes sustentando
balanços para as crianças que vão àquelas áreas.
 
— Que bom!
 
— Sim! Que bom! A árvore de meu amor mostrou que
estava viva apenas poucos meses antes de nosso
reencontro.
 
— Então houve um reencontro?
 
— Sim. Houve um reencontro. Até mesmo para mim,
que ao longo da vida fui sempre tão desatenta às
oportunidades, houve uma nova chance. Mas a árvore
de meu amor nunca produzirá frutos.
 
Ela voltou a chorar, agora convulsivamente.O médico
permitiu que chorasse. Depois, carinhosamente
sugeriu:
 
— Porque não acreditar em que o amor que sempre
esteve em seus corações manteve saudável a árvore
que plantaram na juventude? Porque não acreditar em
que agora as suas saudades são fontes de alegria?
Agora que houve o reencontro, acredite em que virão
dias de ventura.
 
— Eu acredito! – disse ela rindo e chorando ao mesmo
tempo.
 
O táxi passou pela rua lateral ao Teatro Municipal que
resplandecia ao sol das dez horas da manhã.
 
Ela estava sorrindo intimamente. Maravilhada pela
generosidade da vida que lhe oferecia o prazer que
agora sentia ao voltar para casa. Veio-lhe ao coração
a certeza de que ele sempre a havia amado e a amava
ainda agora. E não a via como dona de casa.
  
Não! Ele não a via como dona de casa. Para ele, ela
era a rainha do lar. E ele ainda esperava por frutos
daquela árvore.
 
Você acredita? Acredita em amores relacionados às
vidas de árvores?
 
O amor é vida e eu acredito.
 
Mesmo nada entendendo de botânica, e muito menos
de amor, eu acredito.
                 
(ilustração do autor. montagem com imagens obtidas na internet)
Lucas Menck
Enviado por Lucas Menck em 24/01/2010
Reeditado em 22/12/2010
Código do texto: T2047470
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