FIDELIDADES
 
Por muito tempo me enganei pensando que nossa
amizade surgiu quando a serviço me desloquei,
obrigando-me a passar muitas noites solitárias em um
modesto quarto de hotel, separado de meus familiares,
numa cidadezinha com difícil acesso por estradas mal
conservadas. Ao longo de todo o tempo nossos
encontros ocorreram unicamente no restaurante, e só
na hora do almoço.
 
Compartilhamos mesa simples sobre cujo tampo jamais
houve uma gota de álcool. Ele sempre me pareceu
indiferente à natureza do trabalho a que me atinha,
mas era evidente que possuía algumas noções a
respeito. Falávamos sobre amenidades, abordando
assuntos do dia-a-dia local. E eu ficava com a
impressão de que, para ele, o mundo estava restrito
aos limites daquela comunidade.
 
Naquela época, perambulava por lá grande quantidade
de cachorros. A eles eram dispensados desprezos e
algumas vezes maus tratos, na tentativa de mantê-los
distantes pelo menos das ruas centrais onde se
concentravam os estabelecimentos comerciais, os
prédios públicos, as lojas mais sofisticadas e as praças
ajardinadas.
 
Os cães de fato causavam transtornos. Reviravam o
lixo, defecavam nas calçadas, e envergonhavam as
famílias quando uma cadela no cio arrastava atrás de  
si um sem número de cães disputando o privilégio de
cobrí-la.
 
Sem nada dizer eu me punha a pensar em nosso
mundo, onde as individualidades precisam prevalecer
em prejuízo dos mais fracos.
 
— Arranjam-se como podem – disse-me o amigo que
não sei como adivinhou meu pensamento naquele
finalzinho de nosso almoço.
 
— Os cães? – perguntei.
 
— Sim, os cães. Arranjam-se como podem.
 
E ele riu saboreando certamente o prazer que lhe veio
da certeza de haver chutado certo sobre o que eu
estava pensando.
 
Alguns dias depois voltei ao assunto e ele riu de minha
inexperiência. Disse por fim:
 
— Por aqui, nove entre dez adultos querem ver-se
livres desses pobres animais.
 
— E não conseguem?
 
— Tem mais – disse ele rindo – o combate aos
cachorros faz parte do marketing que elege nossos
representantes a cada eleição que se sucede ao longo
dos anos.
 
Ele parou de rir, fez uma longa pausa. Preparando-se
para deixar a mesa, disse:
 
— Em grande parte o resultado de nossas ações
depende diretamente de nossos propósitos.
 
Confesso que não compreendi o que ele quis dizer
com aquilo. A frase me pareceu sem sentido, ou pelo
menos deslocada uma vez que estávamos até então
falando sobre os cães vagando livres pelas ruas.
 
Com ou sem sentido, deslocada ou não, o certo é que
aquelas palavras calaram fundo em meu espírito
incomodando bastante. Até que, num repente, entendi
todo o significado. Nove entre dez adultos tinham o
propósito de banir aqueles cães. Suas ações, ou
omissões, não visavam o bem estar dos pobres
animais. Eu mesmo não teria o ânimo suficiente para
andar de um lado para outro na cidade acarinhando
crias de cães.
 
— É uma pena que não ouçamos os reclamos de
nossas inclinações – disse-me ele ao me surpreender
pela segunda vez com aquele seu poder de visitar
minha mente.
 
Creio que aquela sua observação agiu sobre mim como
incentivo, como encorajamento, porque a partir de
então as minhas tardes de sábado e os meus dias
inteiros de domingos, eram dedicados aos cães cujos
filhotes eu carregava nos braços. Sem a menor noção
do que estava por vir planejei a instalação de um canil
e, devidamente autorizado pela Prefeitura Municipal
que cedeu o terreno, iniciei a construção.
 
Adquiri o material e pessoalmente fixei esteios de
madeira, estiquei e grampeei as telas de arame
fazendo um grande cercado. Não foi uma tarefa muito
simples de execução por um homem sozinho que
resolve de um momento para outro substituir a caneta
por picaretas, marretas e martelos. Mas foi gratificante
e saudável porque proporcionou a oportunidade de
pôr as minhas mãos na terra.
 
Cuidei pessoalmente dos animais confinados naquele
arremedo de canil.
 
Até aparecem as almas generosas passei por
momentos angustiantes. A cada instante eu precisava
decidir se adquiria uma saca de ração, ou se reservava
meus parcos recursos financeiros para prover meus
familiares de bens e serviços. Era como se os estivesse
traindo. Era uma forma de infidelidade.
 
A ajuda começou a vir aos poucos. Vinha da Prefeitura,
de empresas comerciais e de pessoas físicas. Vinha
na forma de dinheiro, medicamentos, ração, materiais
para as construções. Depois vieram as pessoas com
suas experiências nas mais diversas áreas. Assim
construímos um canil de verdade onde os animais
recebiam todo o atendimento de que necessitavam e
eram bem alimentados.
 
Meu companheiro de mesa de restaurante nunca se
envolveu diretamente nos assuntos relacionados ao
canil. Nunca nem mesmo tocou no assunto e eu tinha
minhas dúvidas se algum dia esteve próximo ao
empreendimento. Claro que notou a redução dos
animais abandonados pelas ruas, mas jamais fez
qualquer comentário, nem abriu nunca a mão para
ofertar um mísero real.
 
O canil estava situado distante da cidadezinha, num
ponto bastante selvagem, sem água encanada, sem
nem mesmo um banheiro para as pessoas que
ajudavam a cuidar dos animais. Eu tinha o propósito
secreto de ajardinar os arredores do cercado e
construir ali alguns abrigos e sanitários. O problema
aparente era a falta de tempo. No fundo eu temia as
críticas que certamente viriam. Para aquela
comunidade seria muito estranho um homem que
carregava crias de cães nos braços e gostava de flores.
 
— Há espaço - disse-me sem mais nem menos o
estranho companheiro de mesa de restaurante,
adivinhando novamente o que me preocupava.
 
Eu agora nem pensei em ocultar meus pensamentos.
Reagi:
 
— Uma coisa é cuidar de cães. Outra, me empenhar
em cuidar de flores.
 
— De qualquer forma são vidas. Não há razão para
constrangimentos quando assumimos as nossas
inclinações.
 
— Nesta droga de lugar você dá um espirro e no minuto
seguinte todo mundo sabe que você contraiu um
resfriado.
 
— No entanto você sabe que foi só um espirro. Porque
ir pelos outros e não acreditar em suas próprias
verdades? Desiste das flores! Podem duvidar de sua
masculinidade, é isso?
 
— Nem pensei nisso.
 
— Claro que pensou. Porque não assume suas
inclinações naturais? Então não lhe vem uma estranha
sensação ao se deparar com as formas femininas?
Não o perturbam certos olhares, certas posturas, certas
dedicações? Eu entendo. Vai dizer que é um homem
sério, um homem casado. Mas não deixa de ser um
homem. Pouco importa se está com uma cria nos
braços, ou admirando uma flor. Sua inclinação natural
age por si mesma e em determinados momentos a
imagem de uma mulher faz com que o sangue corra
mais rápido e mais quente em suas veias. Pode ser
contrário aos seus princípios, às suas convicções
religiosas, as suas promessas de fidelidade. Mas é
conforme sua psique masculina. E o mais importante:
é a sua verdade em relação à sua masculinidade.
Porque deixar de ser livre e gostar dos pequenos
animais e das flores por temer a verdade alheia?
 
Preparei os primeiros canteiros nas laterais do
alambrado do canil. Com a ajuda de várias almas
entusiasmadas construímos abrigos e sanitários. Em
pouco tempo o lugar estava transformado em um
viveiro de plantas ornamentais para reposição nas
praças e avenidas da cidadezinha. E mais e mais
pessoas iam ao canil especialmente nos fins de
semana.
 
Algum tempo depois o proprietário do restaurante veio
perguntar sobre doação de animais. Ele aproveitou a
ocasião para elogiar meu comportamento lembrando
quase tudo desde o principio. Mostrou-se admirado
por eu ser um homem solitário, sempre calado,
tomando iniciativas que no final das contas
beneficiavam todo mundo.
 
Reagi dizendo que os méritos não eram meus. Que
tudo aquilo era inspirado por meu companheiro de
mesa, na hora do almoço.
 
Ele olhou esquisito. Perguntou:
 
— Que companheiro? Desde o primeiro dia em que
pôs os pés no meu estabelecimento para almoçar,
nunca esteve acompanhado. Nem por homem, nem
por mulher. Aqui todo mundo acha que você não abre
mão de sua privacidade à mesa.
 
Eu fiquei muito contrariado com aquelas palavras dele.
Estaria zombando de mim?
 
Mas com o tempo, percebendo que aquele meu
companheiro não mais me aguardava no restaurante
para almoçarmos e que, por mais que procurasse
identificá-lo entre as pessoas não o conseguia, cheguei
a uma conclusão: Se eu não quiser pensar em que os
anjos existem, preciso estar consciente de que naquele
período solitário eu nunca estive sozinho; eu estava
comigo mesmo, aprendendo sobre fidelidade.




Lucas Menck
Enviado por Lucas Menck em 17/01/2010
Reeditado em 23/12/2010
Código do texto: T2034649
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