A CANÇÃO ANTIGA

A CANÇÃO ANTIGA

(É um pequeno excerto que compõe uma obra maior chamada a canção antiga....mas acho que tem alguma autonomia e dá uma excelente história fantástica......boa leitura!)

Naquela noite eu tinha dormido tarde. Devido à tensão em que vivia nos útlimos dias não vinha obtendo êxito em viver uma vida normal.

A perda de um ente querido de forma tão brusca e, após, a notícia de que fiquei tanto tempo fora do mundo ainda não tinha sido absorvida pela minha mente.

Assim, me pus a estudar de um modo que nunca tinha feito antes, o que causava certa estranheza a todos que freqüentavam minha casa. E, sem dúvida, aos colegas do laboratório.

O fato é que desde que me submeti a esses episódios em minha vida, minha casa deixou de possuir qualquer indício de organização. Os livros eram espalhados pelos móveis e, muitas vezes, pelo chão, de forma desordenada. Abertos, com folhas soltas inseridas entre as páginas, empilhados caoticamente, enfim, seguindo a linha que apenas o caos poderia estar traçando.

Minha apresentação pessoal também tinha passado por mudanças. A barba e o cabelo deixaram de ser bem cuidados e o por fazer da primeira e o desgrenhado do segundo me davam um ar cansado e típico de quem, há algum tempo, já havia perdido a plenitude de suas faculdades mentais.

E o sono passava a ser uma obrigação, que a mente só consentia após relutar longamente, como quem exigia companhia em um momento de solidão. E, naquela noite, como nas demais, só consegui adormecer após as duas da manhã.

Deitado na cama pude sentir o torpor dominando meu corpo, e as cortinas dos olhos sendo descerradas lentamente, seguidos pela interrupção quase que instantânea da atividade mental, como se um botão ou chave geral fosse desligada. De um suspiro, entreguei-me.

Veio o silêncio profundo. A escuridão. O vazio.

A noite era quente, como tipicamente ocorria em março. O único som que dominou o ambiente antes do silêncio absoluto foi o ruído melancólico do ventilador que soprava uma brisa suave por todo o quarto.

Apenas esse zunido rasgava o silêncio da noite, sendo lentamente substituído pelo vazio.

Não sei por quanto tempo adormeci. O fato que me faze estremecer, ainda hoje, quando penso, talvez por causa da sensação que me traga à memória, é que, um som surgiu no vazio.

Era uma canção antiga que, ao que me lembro, foi ouvida muitas vezes nessa casa em outros tempos. Cirrus minor do Pink Floyd era a típica música psicodélica, com um violão cadenciado de forma sinistra e uma voz ao fundo que parece sussurar, cheia de eco.

Maria adorava essa canção. Na verdade Maria passou a gostar de Pink Floyd depois que casamos. Ela dizia que eles eram meio doidinhos, tipo eu. Pobre Maria. Sinto sua falta.

De início, aquela música no vazio em trouxe um conforto mental, me levando a um estado de torpor. Mas a insistência com a qual ela se repetia na minha mente foi me causando inquietude e incerteza. Era um sonho ou eu estava acordado?

Repentinamente me via relutando para despertar e sair desse sonho macabro. Afinal a lembrança de Maria ainda me trazia muita tristeza. Um sonho repetitivo, sem imagens. Um sonho que não trazia nada além daquela canção antiga tocando sem parar, me levando a uma profunda angústia.

Com um esforço que me pareceu infinito, comecei a me mexer na cama.

De início uma pequena oscilação em torno de um ponto. Depois, aumentando a amplitude, o meu corpo começou a sacudir em movimentos verticais em espasmos desordenados.

Acordei gritando. Mas ao acordar, mergulhei em uma sensação de terror maior do que a que me dominava antes, já que a música continuava tocando, e desta vez mais alta ainda. Tão alta que me fazia levar as mãos aos ouvidos em desespero.

Pus me a correr em direção à sala, onde, em um pequeno rack encontrava-se o aparelho de som.

Com um movimento brusco arranquei a tomada da parede.

Tomado pelo horror de contemplar o sobrenatural, constatei que a música continuava!

Desesperado, pus me a gritar de forma ensandecida.

Sem entender o que acontecia, e muito assustado, corri até a porta e, pegando a chave do carro saí até a garagem. Dei alguns passos e me vi sozinho na noite escura que ainda lançava suas sombras no mundo. Onde iria? Resolvi voltar.

Naquele momento já tinha percebido que aquele som não vinha de qualquer lugar da casa ou fora dela: ele vinha da minha própria mente. Sem fechar a porta de casa, corri até o quarto e me deitei na cama. Com o rosto voltado para o travesseiro, chorei. Comecei a gritar o nome de Maria. Mas mal podia escutar a minha voz. Apenas o sussuro de David Guilmour.

Não sei por quanto tempo fiquei ali. Mas acho que adormeci. Caí no vazio. Apenas o vazio.....e Cirrus minor, tocando sem parar.

Não sei se dormi, mas, como que embalado por uma fúnebre canção de ninar deixei minha mente se esvair. E, como tinha começado, a música terminou.

O silêncio novamente.

O melancólico girar das pás do ventilador. O zumbido contínuo de seu motor. E a suave brisa.

Os fatos que se sucederam na noite seguinte, por mais estranha que possa ter sido a experiência que relatei acima, foram ainda mais assustadores. Digo que, pela primeira vez, naquela noite quente de março, me deparei com a sensação que me fez duvidar da ordem dos fatos ou da verdade por trás dos sentidos. Mas foi na noite seguinte que obtive a comprovação de que nada é o que parece

De alguma forma, uma transformação ocorrera comigo durante o coma.

Ou uma loucura me dominava, ou algo em mim estava se dissolvendo, como uma pedra de gelo ao sol.

COMO “AQUILO” ACONTECEU PELA PRIMEIRA VEZ

Na noite seguinte, vindo do trabalho para casa, pus me a refletir sobre o trabalho.

Estava desenvolvendo um sistema empírico que pudesse comprovar o teorema de Laroche-Hernsey. Esse teorema, desenvolvido na década de sessenta pelos cientistas que davam nome à sua descoberta, dizia, em linhas gerais, que a sensação de tempo seria apenas um ordenamento, criado pela mente, dos quadros componentes de um filme, que são, cada um considerado de per si, o presente.

Eu, que nunca tinha acreditado em coisas além da matéria, vinha achando muito interessante toda aquela conversa de neurocientistas. Uma nova forma de encarar a existência. Como se cada cérebro, com suas limitações, fosse um prisma pelo qual a realidade fosse filtrada, e adquirisse a tonalidade decorrente daquele processo.

E se o tempo também pudesse ser filtrado por esse prisma? E se o agora dependesse tão somente do que o cérebro percebesse sê-lo? A idéia da agência era desenvolver meios de prover curas ainda mais potentes para pessoas portadoras de doenças mentais, por meio de processos de mesmerização. Mas eu queria ir um pouco além nas pesquisas, o que me faria pagar um preço caro.

Divagando em pensamentos, cheguei às portas do condomínio.

Apertei o botão do controle remoto e, com um estalo, o motor do portão começou a funcionar .

A rua de acesso estava sombria. A noite nublada e sem lua era cortada por uma brisa serena que fazia com que as folhas de amendoeira farfalhassem umas nas outras, bruxuleando a luz dos postes de iluminação.

As casas tinham as luzes apagadas, já que era bem tarde.

O silêncio dominava, exceto pelo suave ruído do vento. A voz da noite, pensei.

Parei o carro em frente da casa.

O portão da garagem estava com problemas, não abrindo no automático, razão pela qual tive que descer e me dirigir até ele para abri-lo.

Era um portão gradeado comum, fechado por trinco e cadeado. Dava para uma garagem, que tinha, ao fundo, uma janela. A janela da sala de leitura. Dalí, se podia ver a escada de acesso aos quartos e à área íntima, no segundo andar.

Costumava manter a cortina da janela que dava para a garagem entreaberta, para ver a rua sem ser visto, possivelmente uma medida de excesso de precaução.

Abri o portão, ouvindo o farfalhar das folhas e o ruído do vento.

Repentinamente, aconteceu algo que, no momento, não pude discernir.

Não posso negar o espanto que me causou o ocorrido, mas não vou me deter em minhas sensações, mas tão somente nos detalhes do episódio.

O fato é que, naquele momento, por um impulso, olhei para a janela e, estupefato, pude discernir a figura de um homem na escada pela cortina entreaberta.

Ele tinha alguma coisa na mão, uma barra de ferro ou coisa do gênero.

Meu coração disparou.

Sentindo um ódio e terror crescente, quase desfaleci, quando, por uma fração de segundo, mas que pareceu durar um século, ele me fitou nos olhos.

Aqueles olhos, tinham um quê de estranho que não pude perceber na escuridão.

Mas hoje sei que eram como espelhos.

Repentinamente, como se ouvisse as trombetas do inferno, ele pôs-se a correr, subindo as escadas.

Tremendo de medo voltei ao carro e, abrindo o porta malas pequei o primeiro objeto que vi à frente, correndo em direção da porta.

A abri com dificuldade, imaginando cenas de violência e terror.

Corri pela sala, tropeçando no sofá e quase caí no tapete.

Subi o primeiro lance de escadas, com o coração quase saindo pela boca. Meu peito parecia que ia explodir.

Comecei a subir o segundo lance de escadas, após um pequeno patamar. No meio da escadaria parei. Quase perdi os sentidos. Minha mente parecia girar. Me sentia dentro de um turbilhão, como se tivessem puxado a tampa do ralo da pia comigo lá dentro. Fiz vômito, mas não vomitei.

Parado na escada, pude perceber uma força invisível, uma força que de início nasceu no fundo de minha mente, e foi crescendo. Essa força me levava a fazer o inevitável. Mas eu ainda relutava.

E então, respirando de forma ofegante eu resolvi ceder àquela força.

“Olhe para fora”

Sabia que meu destino seria mudado por completo a partir daquele simples ato em meio àquela cena sombria.

A casa às escuras, um invasor noturno armado. Os episódios da noite anterior. Tudo contribuía para dar um ar sobrenatural à esse momento da minha vida.

Mas, ainda assim, nada se compara ao que ocorreu a seguir.

Primeiro olhei de rabo de olho, virando lentamente a cabeça em direção à janela entreaberta. Já sabia o que iria ver. “Olhe para fora” dizia a voz sem palavras. E, sem palavras, muitas coisas mais ela dizia.

Espelhos. Nunca gostei muito deles. Principalmente depois dessa noite.

Não há palavras pra expressar o que senti naquele momento. Um gelo tomou todo o meu corpo. E um misto de horror e medo me invadiu.

Vi uma pessoa lá fora, junto ao portão. Ela tinha as duas mãos apoiadas na grade. De um puxão abriu a garagem.

Minha mente não entendia como o invasor havia chegado ali.

Assustado, olhei em silêncio por alguns segundos. A familiaridade de sua aura me fez estarrecer.

E então, ele, sem aviso, virou-se em minha direção, olhando-me, perplexo por uma fração de segundos.

Durante aquele tempo, foi como se nós estivéssemos conectados.

Pude perceber terror em seus olhos. O mesmo terror que me dominava.

Como que escapando de um transe, subi as escadas correndo. Abri a porta do quarto e não vi ninguém. No outro e nos demais cômodos a mesma coisa. Nenhuma janela aberta.

Então, decidi encarar meu destino.

Ainda com as pernas bambas, tomei o rumo da escada novamente. Desci os degraus.

Chegando naquela mesma posição onde estava parado anteriormente olhei novamente pela janela.

E o que vi, ou melhor, o que não vi, foi o que me fez escrever esses relatos que ora se lê.

Sentei-me na escada. Não havia gatuno algum.

O portão e o carro estavam exatamente como eu havia deixado. A porta entreaberta pela minha passagem. O tapete desarrumado. O sofá fora do lugar.

Repentinamente ouvi a voz da noite. O farfalhar das árvores e a brisa.

Me senti infinitamente pequeno. Pus me a chorar ali, sentado na escada.

Senti minhas forças se esvaindo. Minhas mãos fraquejaram e deixei escorregar o objeto que segurava desde que entrei em casa.

De um estalo, ele bateu no piso cerâmico. Era o som de metal caindo. A barra de ferro que eu pegara no porta-malas quando subi em disparada atrás do ladrão me fez ver a verdade.

Foi então que acordei. Só que acordei para um pesadelo. Aqueles olhos de espelho vieram à minha mente.

A conclusão que tudo isso pode trazer à mente do ser humano comum é muito além de nossa pequena capacidade de discernimento.

Sentindo o peso da noite, comecei a desfalecer ali, ouvindo a suave brisa nas folhas das amendoeiras. Eu ouvira esse som antes? Ou era outro farfalhar? Comecei a perder os sentidos.

Novamente os espelhos....aqueles olhos. Quem já se olhou no espelho à noite e teve a impressão de estar vendo um fantasma poderá me entender.

Quando era criança, gostava de ficar em frente ao espelho me perguntando qual dos dois lados era real.

Custava a acreditar que aquele homem que sorrateiramente invadiu a minha casa.........................era eu!!!

J C ESCOBAR DE OLIVEIRA
Enviado por J C ESCOBAR DE OLIVEIRA em 16/01/2010
Código do texto: T2033193
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