O HOMEM ATRÁS DA PEDRA
Um homem corre por um terreno arenoso.
Ele traja um uniforme de combate camuflado e carrega um fuzil.
Os projéteis se chocam com a areia ao seu entorno fazendo um som abafado antecedido por um silvo.
O homem corre em desespero, empunhando seu fuzil, sem olhar para os lados.
Ao seu redor muito sangue e corpos estilhaçados, alguns acompanhando o movimento de vai-e-vem das ondas do mar que testemunha o massacre.
Muitos sucumbiram.
Mas ele está ali, correndo em meio à ofensiva inimiga. Avançando.
Ele vê uma cratera no terreno, possivelmente causada por algum morteiro que explodiu durante o bombardeio que antecedeu o desembarque.
Se lança no buraco.
Ali ele pode respirar um pouco, abrir seu cantil e tomar um gole de água. Mas não é um local muito seguro. Ele precisa continuar.
Lança um olhar ao redor e vê uma pedra grande na areia.
Será um bom abrigo, pensa.
Decidido, ele conta até três e sai em disparada.
Os tiros recomeçam. O zunido seguido do ricochetear das balas.
Driblando a artilharia inimiga, ele consegue atingir a pedra, se jogando atrás dela.
Agora sim está mais seguro.
Resolve que vai ficar ali por um tempo.
Senta-se na base da pedra e se dá ao luxo de tirar o capacete, observando o céu ao redor. Era noite e havia bastante estrelas no céu.
Toma mais um gole de água e retira uma barra de ração do bolso da sua gandola, comendo-a sem pestanejar, com o olhar vazio fixo no horizonte e tentando ouvir o silêncio.
É interessante como o silêncio conforta, pensou.
Deitou ali e dormiu ao pé daquela pedra, que era seu escudo, embalado pelo ronco das ondas do mar aos seus pés.
No outro dia acordou e resolveu olhar por cima da pedra e ver se via alguém.
Não viu ninguém nem ouviu qualquer som que denunciasse a presença humana.
Resolveu ficar por ali mais um tempo.
Agora, já de dia, podia perceber que a pedra era ladeada por um riozinho muito límpido que cortava a praia e que, se tivesse sorte, podia conseguir pegar algum peixe ali e com certeza beber daquela água.
Resolveu que aquele dia não tentaria mais avançar. Ficaria por ali descansando da luta dos dias anteriores. Sentia se seguro sob o pé daquela pedra, que era seu escudo.
Deitou-se na areia e observou o céu, carregado de um azul vívido, salpicado por nuvens brancas.
A leve brisa que soprava trazia uma sensação confortável e acolhedora.
Resolveu que ficaria ali enquanto pudesse, pois estava cansado de se expor a tanta dor.
E assim, com o mar aos seus pés, decidiu chamar de lar aquele lugar ao pé daquela pedra.
O tempo passou e o homem envelheceu ao pé da pedra, bebendo água da chuva ou do riacho límpido que corria ao seu lado, comendo do alimento que a natureza lhe enviava pelo riacho ou na areia da praia.
Não precisava de muito. Criou raiz ali. Sentia-se como uma árvore: apenas observava a praia, o mar, as ondas, a brisa.
Estava muito feliz. Queria ficar ali para sempre. E assim seria se um dia um pássaro não passasse voando à sua frente. Era um vôo tão belo que o homem resolveu segui-lo com os olhos. E assim fez.
O pássaro cruzou a praia planando, quase estático, aproveitando a leve brisa que soprava.
Após algum tempo bateu as asas, subindo até uma montanha que ficava num dos extremos da praia.
Foi então que o homem vislumbrou aquele lugar maravilhoso no topo da montanha.
Não sabia como não tinha visto ainda aquele paraiso.
Era um platô coberto de árvores e banhado pelo sol. Reparou que o riozinho que ladeava sua pedra descia daquela montanha, razão pela qual presumiu que ali tivesse água e comida em abundância.
Começou a sonhar com uma casa construída com árvores nativas naquele platô, de onde pudesse observar o brilho do mar nas noites de lua cheia.
Ficou entusiasmado com a idéia.
Resolveu que sairia dali em breve e que tentaria ir para o platô. Mas antes precisaria se preparar, afinal a corrida seria muito maior do que a que tinha dado até chegar ali.
Então começa a fazer exercícios diários e se concentrar no seu objetivo.
Algum tempo depois, decidiu que havia chegado a hora de partir.
Mas na última hora sentiu medo de que ainda pudesse ter alguém o esperando junto à metralhadora inimiga.
Aqui já me sinto seguro, tenho tudo que preciso. Vejo a lua, as estrelas, o mar, a praia...
Mas não vejo o brilho da lua cheia sobre o mar, pensou.
E assim o homem começou a sofrer. Ele imaginava que poderia ser mais feliz lá em cima. Mas tinha medo de abandonar seu abrigo e ser atingido por um projétil. Já tinha sido tão difícil chegar até ali.
E então ele ficou junto à pedra e ali passou a sua vida seguro e protegido.
À uma altura da vida ele começou a ter delírios que era um rei e que estava sentado em seu trono, e que o próprio Netuno era seu servo e trazia-lhe os melhores alimentos que o mar podia lhe oferecer. Sonhava que era o senhor daquela ilha e que os habitantes daquele local vinham lhe pedir conselhos e prestar-lhe tributos.
A segurança o deixava satisfeito, mas ao mesmo tempo o entediava, razão pela qual as vezes lançava um olhar ao platô, pensando que um dia poderia começar sua jornada àquele local de sonho.
E o tempo passou: o homem ficou velho e moribundo.
Sentindo a morte próxima, satisfeito por ter vivido em segurança até quase cem anos, ele resolveu se lançar em uma aventura: não mais ir até o platô, já que não tinha mais tempo ou saúde para isso, mas dar uma volta pela praia ao redor.
Afinal, qual seria o problema levar um tiro depois de uma vida longa como a que levou?
Lentamente se levantou e saiu de trás da pedra.
Tinha longas barbas brancas e só não estava nú por um pedaço de trapo que lhe cobria as genitais.
Andava encurvado e a passos curtos.
Caminhou alguns passos para o lado, saindo de trás da pedra.
Silêncio.
Tem alguém aí? Murmurou timidamente, olhando apreensivamente para os lados com seus olhos amarelados.
Silêncio.
Oi, tem alguém aí? Gritou desta vez.
Silêncio.
Andou mais alguns passos sentindo o calor da areia aos seus pés.
Ao redor nenhum movimento ou som diverso daqueles produzidos pela própria natureza: o farfalhar das árvores, o canto de alguns pássaros, o ronco e o vai-e-vem do mar...
Começou a rir, inicialmente uma risadinha tímida, depois uma gargalhada histérica que foi sendo substituída por um choro soluçado e molhado.
Esse tempo todo, murmurou entre gemidos, eu estava sozinho!!
Caiu de joelhos na areia, apertando a entre os dedos e encostando o rosto no chão.
Esse tempo todo eu estava sozinho!! Gritou.
Deitou de barriga para cima, com o corpo sujo de areia e soluçando.
Sentiu uma pontada forte no coração e depois o ar indo embora, como se não conseguisse mais inspirar.
Sabendo que sua hora chegara, fez um esforço para olhar para o lado.
Lá estava o platozinho de seus sonhos, com árvores banhadas pelo sol e pássaros cantando.
Com os olhos fixos no seu sonho, morreu ali, junto à pedra que era seu escudo e com o mar aos seus pés.