O TEMPO QUE AINDA TENHO

Eram três da manhã e J.C. Ainda estava acordado.

Tinha sido um dia cheio no trabalho e ele acabou gastando algumas horas vendo um filme de Ingmar Bergman.

Como não conseguia dormir, levantou-se da cama e dirigiu-se à sala de sua casa, abrindo as cortinas e se pondo a observar a noite.

O silêncio reinava absoluto.

Lá fora, apenas o farfalhar das folhas revolvidas pela suave brisa noturna quebrava a absoluta inércia do ambiente.

As casas já tinham as luzes apagadas e seus habitantes já deviam estar adormecidos hà tempos, possivelmente sonhando com suas próximas conquistas materiais.

Todos morrerão, de joelhos diante do tempo, inexorável e impiedoso. Pensou.

Foi quando se deu conta de si mesmo. Estava em frente à janela, olhando para fora e a baixa luminosidade do local permitiam-lhe ver o próprio reflexo.

Por um instante viu uma pessoa diferente da que era hoje.

Não viu o J.C amargo que era, cheio de ódio e angústia, cheio de tristeza, mas sim um rapaz topetudo, com um sorriso nos lábios e tristeza no olhar.

Era ele há vinte anos atrás.

Assustou-se com o que vira e deu um passo para trás, tropeçando no tapete. O tropeção fez com que ele perdesse o equilíbrio e desse alguns passos para trás enquanto caia até que bateu com a parte de trás da cabeça em uma mesa de metal que estava no centro da sala.

Xingando um palavrão, levantou-se com a mão na nuca.

Cacete, que dor.

"Merda de tapete, já falei que ele ia dar problema aqui, mas não é brincadeira, aqui nessa casa eu falo e ninguém escuta" resmungou mal humorado.

Massageando o local da pancada, dirigiu-se até a cozinha no intuito de pegar uma pedra de gelo.

Preparou um saco de gelo improvisado com um pano de pratos e algumas pedrinhas que tirou do congelador.

Com o saco na nuca se dirigiu para a sala lentamente pelo corredor escuro.

Estarreceu quando obteve um ângulo suficiente para ver a sala.

Parou ali mesmo no meio do corredor e ficou parado gaguejando enquando as pedras de gelo caiam pelo pano que suas mãos não seguravam mais.

Pela segunda vez naquela noite viu aqueles olhos tristes.

Os seus olhos.

Sentado na poltrona da sala estava aquele rapaz de 17 anos de olhos tristes e um sorrisinho no rosto.

Oi. Ele falou com uma voz quase infantil.

J.C se lembrou de como tinha a voz fina e delicada em sua adolescência, sem firmeza e decisão.

Assustado e maravilhado, dirigiu-se à outra poltrona e sentou-se, ficando ali fitando o rapazinho de camisa de malha com as mangas dobradas, bem ao estilo anos oitenta.

Passado algum tempo respondeu: - Oi.

O rapaz sorriu e falou:

Você está velho. Mas tem muitas coisas legais aqui. Caramba, seu videogame é tudo de bom.

J.C sorriu.

Vou ter um filho, falou.

Eu sei. Por isso que eu vim.

Ah é?

Ficaram em silêncio se olhando. Ele estava angustiado com tudo aquilo, mas ao mesmo tempo feliz em ver aquela criança de novo, aquela criança tão fantástica que havia sido. E era uma criança.

De onde você veio? J.C perguntou.

Daqui. O rapaz respondeu batendo com o indicador direito na cabeça.

E daqui. Bateu no lado direito do peito.

Quer dizer, daqui. Bateu no esquerdo, rindo.

J.C caiu em uma gargalhada no que foi acompanhado pelo seu interlocutor que se olhavam enquanto riam.

De repente J.C perguntou:

Você está morto?

Claro que não, respondeu. Estou vivo. Ficou em silêncio alguns instantes e perguntou: E você?

Teve uma vontade repentina de chorar. A resposta era óbvia sob o ponto de vista físico, mas não sob o ponto de vista psíquico: J.C vinha se sentindo morto há muito tempo. Era apenas uma folha sendo levada pelo vento que soprava lá fora.

Reprimia sentimentos e desejos, crucificando-os seus semelhantes quando não o faziam, odiava o mundo e as pessoas, vivia desesperançoso e angustiado, à espera do derradeiro momento, primeiro de seus antecessores, até que, por fim, chegasse a vez de seu coração parar de bater e a cortina baixar de vez, sem que nada de significativo tivesse ficado de si para a posteridade. Tinha vontade de ser um grande homem, mas se sentia medíocre em tudo que fazia.

Sim estou morto, pensou. Mas tinha vergonha de admitir isso para o seu lado mais puro e belo.

É claro que não, respondeu com os olhos marejados. Ainda estou vivo, e muito.

Sabe até quando? O rapaz perguntou.

Não, J.C respondeu prontamente. Ninguém sabe não é mesmo.

É verdade, ele disse e voltou a ficar em silêncio me fitando.

Seu olhar não era acusador. Era terno e até certo ponto brincalhão. Tinha muito amor. Lembrou-se de quanto amor tinha dentro de si naquele tempo.

Naquela época, J.C não conseguia odiar nada nem ninguém. Nem seus maiores opressores. Nem a si mesmo. Aquele rapaz não se odiava. Ele se amava, e por isso sonhava com o futuro. Ele fugia para um lugar distante quando as coisas ficavam difíceis, um lugar onde ele podia ser feliz e sorrir. E assim ele se mantinha vivo.

Ele ainda olhava J.C, que tinha certeza que ele conhecia seu íntimo. Não tinha o deixado de lado em todos esses anos. Sabia cada falha de seu ser, cada sentimento negativo, cada maldade com seu corpo e sua alma que ele fizera não lhe escaparam ao conhecimento. E ainda assim ele trazia aquela ternura.

Preciso ir. Ele falou de repente.

Não vá. Quase gritou.

O rapaz deu uma gargalhada e ao final falou:

Você mudou pouco.

O que veio fazer aqui? J.C perguntou com a voz trêmula.

O rapaz já tinha se levantado da poltrona e estava arrumando a barra da camisa olhando para uma linha que estava soltando na costura da bainha.

À essa pergunta ele levantou os olhos e fitou J.C. Não sorria mais.

Você não sabe mesmo?

Não.

Veja então.

Dizendo isso o rapaz se dirigiu até a janela aberta apontando lá para fora

J.C se levantou e caminhou a passos lentos, já imaginando o que ia ver.

Enquanto se dirigia para a janela, lembrava de quando era aquele rapaz. Lembrava da tristeza daqueles dias. Do desespero do alcoolismo. Do medo de perder tudo que tinha. Sua mãe, seu pai, sua vida. Lembrava de como sua família era massacrada por tanta dor. E lembrava que ele sonhava com um futuro onde pudesse viver como uma pessoa normal e ver sua família livre dos grilhões do vício, sonhava em ter uma família, uma esposa, alguns bens materiais e muita paz.

Sonhava que era um homem íntegro e de bem e que dormia feliz toda noite porque não tinha medo de que a sua família se desintegrasse.

Sonhava em ser assim. Um homem simples e feliz. Em ter uma família simples e feliz. Em ter uma mente simples e feliz.

Parou em frente à janela olhando para fora.

A cena que via refletia em seus olhos que não conseguiram conter as lágrimas que derramava torrencialmente.

Em meio a seu desespero, sentiu a mão do rapaz em seu ombro.

As coisas estão difíceis lá. Por isso estou aqui. Ele disse.

J.C o abraçou de um impulso após essas palavras, chorando copiosamente.

Obrigado por me deixar vir aqui quando preciso. Falou o rapaz.

J.C estremeceu e sentiu que ia desfalecer. Sentou-se na poltrona. A sua visão começou a ficar turva e a imagem da sala foi se desintegrando à sua frente, até que tudo ficou branco, não enxergando mais nada, nem tampouco o rapaz.

Repentinamente, no meio do vazio, ouviu uma voz sussurrada dizer-lhe carinhosamente:

Estou orgulhoso de você!

O silêncio absoluto se instaurou.

Não sabe por quanto tempo ficou ali, mas começou a ouvir uma voz chamando seu nome. Inicialmente mais ao longe, a voz ia ficando cada vez mais nítida.

Era a voz de sua esposa.

Abriu os olhos.

Estava deitado no chão da sala. Sua esposa estava ajoelhada no chão do seu lado.

O que houve? Perguntou.

Eu ouvi um barulho, vim aqui e você estava caido no chão, acho que tropeçou no tapete. Bem que você falou que ia dar merda esse tapete. Desculpe eu não ter te ouvido. Você tá bem?

Cadê...

Cadê o que?

Por um instante lembrou da última frase que lhe fora sussurrada no ouvido. Não sabia o que tinha acontecido ali. Mas sabia que era uma coisa só sua. Decidiu não contar a ninguém enquanto não conseguisse enteneder melhor tudo aquilo.

-Deixa.

Cadê o que? O controle remoto? O seu fone de ouvido? Ele tá na minha bolsa, quer pegar lá agora? Você tá bem mesmo? Não quer ir no médico.

Ei. Falou.

O que? Ah tadinho, deve tá doendo, deixa eu ver.

Não tá doendo. Deita aqui comigo.

Tá doido.

Sim. Doido como nunca fiquei na minha vida. Mas um doido feliz. Deita.

Tá então. Será que nosso filho vai gostar de dormir no tapete? Vou pegar um travesseiro pra nós.

Tudo bem, pega lá então. Mas antes faz um favor? Abre a cortina. Quero olhar lá fora deitado daqui. Tá fazendo uma noite linda.

Ela, meio sem entender, abriu a cortina, deixando ver o céu e as estrelas que habitavam de forma solitária a noite lá fora.

Pela primeira vez em muito tempo, J.C. se sentiu feliz.

J C ESCOBAR DE OLIVEIRA
Enviado por J C ESCOBAR DE OLIVEIRA em 02/01/2010
Código do texto: T2006746
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.