Pode o amor ser distinto?
E foi então que o tango tomou conta da sala.
Em meio a lágrimas, pensamentos e bebidas, S.S., rapaz metropolitano clássico, se viu em uma tristeza mórbida, ainda que no quarto ao lado seus três irmãos estivessem a sorrir.
O copo, que continha o mais fino dos vinhos de sua adega, passou de seguro em suas mãos para cacos no chão enquanto o pobre homem se retorcia no tapete. O piano e o violino pareciam agora muito mais altos que outrora.
O primeiro pensamento era de que estava morrendo, porém sabia que não era a hora, pois estava apenas na terceira taça de seu vinho, além de não ter colocado água no cacto essa semana e nem dado comida a seu belíssimo gato preto. Só podia ser da bebida, era o que pensava, por isso não gostava dos vinhos brancos, sempre maltratam a um. Piscou...
Andou de lado a lado da sala e, em seguida, recorreu a seus apontes para ver onde estava o número de telefone da maldita. Não, sei que a bíblia não trata as mulheres como benditas em sua totalidade, mas se Deus a tivesse visto tudo teria mudado. Simples, sorridente, mas não qualquer sorriso, e sim um sorriso infantil, daqueles que se vê a verdade resplandecendo, mas não por isso era uma criança. Suas responsabilidades eram de gente muito grande. Sempre chegava atrasada, mas era responsável... Tardava, mas chegava.
E por que comecei a pensar tudo isso? Não quero lembrar, darei comida ao gato. Adoro gatos. Eles transparecem uma liberdade que me agrada muito. Não necessitam andar juntos a ninguém; dão seu jeito por si e é assim que sou, às vezes, quando não me pego relembrando de...
O homem entra pela terceira vez na cozinha, destas, tropeça duas no gato e não lembra o que foi fazer no recinto.
Mas nem lembro onde coloquei o fumo, apesar dele sempre estar com o cachimbo na mesa de centro. Ahhh, está na mesa de centro! Adoro gatos. Adoro meu cachimbo. Já imaginou se gatos fumassem cachimbo? Pelo menos teria uma companhia mais agradável, já que beber vinho e fumar sozinho é muito chato. Ai... Sai do meu caminho gato!
Ao sentar, quase deitado no sofá, notou que o disco estava ainda na metade e que no vinho nada havia mudado. Ainda restava aquele copo farto que fazia com que S.S. transparecesse ser uma foca e o aroma o adestrador de focas. Ao aproximar-se do copo, sentiu que tinha fome e, principalmente, que beber com fome lhe dava gastrite. Nisso o gato e seu dono eram iguaizinhos.
Como nada havia encima da mesa e a preguiça lhe tomava o ser, resolveu voltar os olhos ao vinho. Surpreso gritou, esbravejou, evocou até mesmo a sexta geração de antepassados do gato, mas este continuava a bebericar o vinho. “Ah, o deixa beber, antes a gastrite dele do que a minha”, resmungou. Piscou novamente...
Foi então que novamente o tango tomou conta da sala.
O copo de vinho tombou sobre o gato, a solidão deixou de existir, porque seus irmãos surgiram no quarto. As lagrimas surgiram com mais intensidade, os gritos também – não mais para o gato -, e a voz delicada que saia da vitrola começou a confundir-se com a dela, ainda que num misto de dor e prazer.
Sem entender o que acontecia naquele momento, pensou em correr aquele ser súcubo de sua fronte, contudo não era ouvido; sorriu ao ver os irmãos gritando, já que sempre foram tão ponderados; o gato no canto do marco da porta o fez lembrar que era a comida do bichano que havia ido buscar na cozinha, mas seu corpo estava se distanciando da cena.
Foi então que mais uma vez o tango tomou conta da sala, mas desta vez o instrumento que ecoava era o acordeom, mas só por três minutos. Logo veio o chiado da vitrola, a escuridão e o sentimento de que não mais poderia dar água ao cacto nem comida ao gato.