Fissuras
A cidade era de pouca chuva, mas quando isso acontecia vinham os relâmpagos e os raios caíam mais de duas vezes no mesmo lugar: na minha casa e na minha cabeça.
Foram tantas as ocorrências, que, certa vez, olhando-me no espelho, percebi que a minha alma apresentava discretas fissuras.
Com o passar dos anos, já adulto, as fissuras evoluiriam e aos poucos se transformariam em fendas profundas. Cada vez mais profundas.
Assim, ocorreu-me não dar importância ao episódio e por muitos anos recusei-me a conferir o estado da minha alma.
Numa noite de São João em que fui atingido por inúmeros raios, não pude mais ignorar o meu destino.
Diante do espelho, ainda pude ver os cacos da minha alma no exato instante em que desmoronava num grito lancinante e repousava sobre o assoalho.
Sem saber como recompô-la, desde então eu sou apenas um corpo onde os sonhos não perduram.
Que não envelhece e não sente dor.