Manhãs Existenciais
Descobri-me vivo numa dessas manhãs em que o sono acaba de súbito.Dia de outono. Véu frio e fluídico cobre o relevo do rosto. Um andar meio que de zumbi leva-me à janela, e ao abri-la vejo as gotas de orvalho que a tudo cobrem.
A manhã parece feliz por existir e tristonha por nascer. A manhã tem alma humana que atrai, com seu mistério, minha curiosidade quase infantil. E então imagino serem as gotas da manhã as lágrimas do sono noturno. Forma-se assim um quadro onde o ser está incrustado em tintas de cotidiano e ares místicos.
Os olhos brilham em meio à manhã embaçada pelas cortinas de neblina. O silêncio diz tanto e eu, calado, o escuto. Visto trajes de minha solidão inquisitiva. Sinto sobre a epiderme o calor do sol surgindo por detrás da cobertura enevoada do dia. Mergulho em dúvidas ao atingirem-me as mazelas do cotidiano, em meio a momento tão sublime para o espírito. Corpo e alma divergem, mas estão atrelados a um único ser. Invejo um pássaro que se atira sobre o infinito do espaço, sem ter fronteira alguma. Mais do que o ser plumado, invejo sua capacidade de voar.
É como se o voo tivesse a sublime possibilidade de nos livrar dos entulhos de nosso cotidiano. De repente paro e descubro-me fraterno da tristeza feliz da manhã. Descubro que o dicionário chama isso de melancolia. E tomo, então, a atitude de criar um sorriso. Tinjo minhas lágrimas ocultas na nascente do orvalho que pouco a pouco se dissipa.
O sol está senhor do céu, é belo e forte. No entanto, ainda sonho com a delicada e frágil lua. Impossível ser um só. Como um prisma e suas cores, um único ser é um universo de tantas faces. As horas perdidas. A hora marcada. Estou vivo e finjo não querer existir. Existo, e por isso, num jogo arriscado, brinco de viver.
O dia só existe e é belo porque existe a noite. A noite só é plena porque existe o dia. A felicidade só é flor vistosa porque um dia, no mesmo jardim, houve uma flor murcha chamada tristeza. Mas o que importa é que exista o jardim. E ali haverá sempre a possibilidade de se verem as tais flores numa manhã qualquer, perdida no infinito espaço de um segundo de vida.