ENVIDIA
Era uma ponte estreita, que passava em cima do rio de águas cristalinas.
Todos os dias, Andreas caminhava por ela, contemplava o correr das águas e colhia algumas flores às margens do pequeno rio.
Andreas observava suas vertentes desaguando afora, tal como seus intensos sentimentos, inúmeros demais para um ser tão pequeno.
Nunca tivera receio do movimento inconstante e aterrador no balançar solitário da pequena ponte. Por ela andava e nela guardava seus segredos. Às vezes, preferia ficar recostado aos braços da pequenina, murmurando, sonhando, sentindo-se feliz, apenas, por existir.
Da foz, das palavras, um lamento ardente, um grito mudo, em existir e mais nada.
Existiam, junto a ele, as flores, os campos, o céu findando azul na noite, os pássaros que adornavam as largas copas arbóreas e Deus, n’algum lugar ou em tudo.
Acreditava em Deus. No amor esplendoroso Daquele que dá vida, sem nada pedir.
O amor de Andreas também era grande e constante. Apesar de cuidar da mãe doente e de nunca ter conhecido o pai. Sonhava com a face oculta do pai. Sonhava e, horas, chorava baixinho. “Por onde andaria?”, almejava Andreas, todos os dias.
Andreas parecia feliz. Era intenso e sonhava alto.
Ao olhar as nuvens pesadas, pousando o céu, imaginava os olhos de Deus. Como nunca os veria. Os olhos Dele e de seu ausente pai.
Mas Andreas guardava tantos sorrisos. Talvez numa essência mágica e secreta, que ousa escapar, mesmo diante do correr ininterrupto do tempo, mesmo na morte.
Até então, secretos e imaculados pensamentos.
Até o dia que viria a ser o instante da perda.
Ainda criança, sem defesas, Andreas parecia incorruptível aos males externos. Quanto aos males de si, ainda não os conhecia.
Andreas amava a visão do mundo sem o conhecer tão bem. Não possuía a visão dos ditos sábios. Até o momento do encontro.
Num dia de chuvas grossas e amargas, que rolavam dos cabelos à face e caíam, agudas gotas, aos lábios.
Um velho pousava sobre a ponte, antes tão solitária; naquele instante, dividida, repartida, habitada por alguma alma nunca vista.
Andreas se aproximou, sem medo. Não conhecia, simplesmente, o medo, o mal alheio.
Perguntou ao velho:
- Quem és?
O velho apenas sorriu, cínico e desalentado. Continuou mascando o fumo negro, emoldurando os dentes pavorosos.
Andreas sentou ao seu lado e continuou, só e calmamente, o diálogo:
- Aqui é tão bonito! Não acha?- sorriu doce – Como é seu nome?
O velho, num suspiro longo, desentravou:
- O que há de bonito? Um rio turvo, árvores mortas, pássaros sujos e flores... Flores não servem para nada. São tão feias e amarguradas.
Andreas continuou sorrindo:
- Tudo há de belo. O rio é cristalino, as árvores, verdes como os olhos de Deus, os pássaros livres me causam um sentimento tão bom! Ah... e as flores! As flores perfumadas e coloridas...
O velho começou a bater sobre o dorso da ponte e exclamar, violentamente:
- Como podes saber a cor dos olhos de Deus? Seu moleque estúpido!
Andreas, convicto e irredutível:
- Os olhos de Deus podem ser da cor que quisermos. Verde é a cor da vida, dos matos, das plantas que Ele criou; verdes são os olhos da minha mãezinha. Verdes que brilham...
O velho sorriu, sarcástico:
- Você é só um moleque, não sabe o que está falando...
Andreas tocou em suas mãos:
- O senhor ama alguém?
- Que pergunta tôla?
- O senhor ama?
- O amor é uma coisa horrível...
- Horrível? É porque, deveras, o senhor não ama ninguém. Ou porque não há alguém para amá-lo e ensiná-lo a amar. Vê as coisas, os bichos, o rio, a vida com os olhos da alma e, por isso, vê tudo tão feio. Sua alma está tão amarga como a chuva que cai sobre nós.
O velho nem percebera que chovia, tamanho seu desprezo pela vida.
Andreas continuou:
- Se amasse saberia falar do amor, da beleza que há em tudo. A beleza que há, até mesmo, nos olhos tristes como os seus.
O velho deixou cair uma lágrima que, logo, se misturou a alguma gota de chuva.
Andreas tirou da lapela encharcada uma flor amarela e estendeu-a ao velho:
- Pega!
O velho, com as mãos trêmulas e manchadas, segurou a flor.
Andreas sorriu, pela última vez e levantou-se para ir embora.
O velho, imprecisamente, tirou do bolso um punhal prateado que foi de encontro ao peito de Andreas, traspassando-o.
Andreas soluçou um breve lamento e um suspiro rubro, como o sangue que vertia do peito e dos lábios. Lembrou-se do leito do rio, da mãe, de quão maravilhosos poderiam ser os olhos verdes de Deus...
Exclamou:
-Talvez encontrarei meu pai!
O velho, assustado pela tão imensa e sobre-humana fé do menino, começou a correr, sem destino, até desaparecer no horizonte.
Andreas ainda exalava alguns brandos e finitos suspiros. Chuva, lágrimas e sangue se mesclavam em seu rosto, antes viçoso e iluminado. Escorriam, entrelaçados pelo peito.
Caído, Andreas observava o céu escuro, a água abundante pousando sobre os seres, sobre o mundo tão rude.
Sorría, esperando, talvez, ver o pai. Apenas chorava pela mãe, cada vez mais distante.
A madeira, quase podre, da ponte, aos poucos, tingia-se de um vermelho tão vivo quanto a alma do garoto.
Andreas, cerrando os olhos lentamente, sussurrava:
- Os olhos de Deus são realmente verdes!
O céu iluminou-se num magnífico instante. A chuva, silenciada.
Um anjo branco, cintilante, estendeu-lhe as mãos:
- Vamos Andreas...
Andreas, admirado, levantou-se:
- Para onde vamos?
O anjo, imenso, sorriu, segurando as pequenas mãos daquele anjo outro que acabava de nascer:
- Vamos para um lugar onde ninguém poderá lhe fazer mal algum... Um lugar tão bonito como este. Onde verás a cor dos olhos Dele e onde encontrarás seu pai...
O anjo prosseguiu, guiando Andreas para um arco de luz intensa:
- Um lugar, meu pequenino, onde não há dor, lágrimas ou morte. Onde não há, nem haverá "envídia"!
.:envidia: inveja.