VERDE

Vaguei, por mais de dez minutos, de um lado para o outro do quarto. Quase não durmo. Naquelas noites, havia dormido menos.

As paredes azuis, tão claras e entediantes, deveras provocavam uma certa analgesia n’alma. Naquela madrugada, me causavam náuseas. Nunca gostei de azul.

A cama, como cristal incandescente, cansava-me os olhos, fazendo-os marejar, vez ou outra.

Alguém abriu a porta, um instante:

- Não vai para casa dormir, doutora?

Consegui erguer a cabeça e exclamar:

- Já estamos amanhecendo!

A enfermeira, negra e forte, insistiu, outro segundo:

- Um café quente ou um chá?

Sorri, então, falsa e discretamente:

- Sorvete de nozes?

Ela também sorriu, mas fechou a porta, num último gesto de solidariedade. O silêncio dos justos.

Não encontraria, naquela madrugada turva, morna e solitária, nenhuma taça de sorvete, tampouco alguma paz interior.

Meus olhos quase não se fechavam. A paciente não se movia. Também não tinha movimento nítido o ar expirado de suas narinas. O coma não se revertia e meu peito caminhava junto à alma que em coma se esvaia.

A respiração dela se tornava ofegante, a temperatura mais baixa e minhas mãos tão trêmulas e incertas. Mesmo assim, eu podia, num momento de desespero, enlaçar o corpo imóvel e fitar a face bem delineada, desenhada por Deus em perfeita simetria. Os olhos cerrados escondiam uma cor verde-dourada. Lembrava-os deles, antes luminosos.

As mãos finas e brancas, eu dedilhava suas linhas sinuosas, numa palma tão pequena e gelada.

Dos lábios, a cor fugia, gradativamente, e pávidos, pareciam clamar, longinquamente, pela vida. Com alguma palavra branda, diriam, mesmo sob o silêncio da madrugada mortificante.

De joelhos permaneci, aos pés da minha jovem irmã, até os primeiros raios de sol.

O furor e o medo que a noite provoca nas almas iam se findando, lentamente. Meu coração, o mesmo. Bateria junto àquele leito, pelos instantes a fio ou lá se quebrantaria para sempre.

Orei. Poderia continuar orando ou começar a crer nas asas fortes d’uma borboleta negra. Pedi a Deus por sinais que conduziriam minhas mãos à cura.

Num instante de embriaguez espiritual, soprei-lhe próximo ao ouvido alguns sonetos mal recordados. De certo, eu cria, se ergueria corpo ou alma.

Apanhei o livro que estava sobre a mesa e comecei a recitar-lhe Shakespeare. Escolhi o mais imortal e triunfante verso. Que este verso não fosse o último - pensei.

Um vento baixinho cantou pela fresta da janela entreaberta; talvez, alguns anjos entraram com ele.

Uma lágrima, fina e iluminada, rolou de seus olhos, antigos verdes, dourados; agora, lilases, foscos. Seus cílios abriram em glória. Cílios fartos! Tão fartos quanto meu coração e minha espera, naquele segundo, antes tão imprecisos.

Gritei! Mas contive o ímpeto. Chorei em lampejos, soluços e açoites de glória. Depois, consegui abrir a porta e chamar alguns, que logo vieram aos poucos, já assustados.

Todos permanecemos inertes. Amigos, enfermeiros e anjos contemplando um milagre. Um imenso e estrondoso milagre verde, cheio de esperança e luz. Da cor dos olhos que voltavam à vida. Da cor de Deus!

Anna Beatriz Figueiredo
Enviado por Anna Beatriz Figueiredo em 29/10/2009
Reeditado em 29/10/2009
Código do texto: T1893919
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