O Niilista
Eles já estavam bastante suados e cansados, a lama dava um tom avermelhado a sola de seus tênis. Thom nem imaginava se estava chegando ao destino, a última pergunta sobre isso ao seu amigo tinha sido aproximadamente dez minutos atrás. Um pensamento óbvio não lhe escapara: “teria sido mais fácil ter vindo de ônibus”, mas não externava ao seu amigo, que em sua opinião adorava um mistério.
Fez mais uma vez a pergunta de praxe:
- Já estamos chegando ? – Falava isso enquanto enxugava a testa com as costas da mão.
Bestial apontou o dedo para frente e balbuciou que era logo ali adiante. Thom deu um longo suspiro de alívio.
Quando finalmente chegaram, se depararam com um enorme portão de metal, Bestial mostrando conhecimento de causa, colocou a mão por uma fresta do portão e levantou o pino que o abria em sua totalidade, como se tivesse abrindo os portões do paraíso e, dando passagem a carruagem de alguma divindade:
- É o jeito. Disse Bestial armando um sorriso.
Logo na entrada tinha uma plaquinha com a inscrição: "vila do Leite". Thom olhou algumas belas casas em ambos os lados, mas a que lhe chamou a atenção foi a última, algo lhe dizia que o Niilista morava nela, em poucos segundos a sua dúvida foi sanada, não tinha erro, era a casa dele.
A primeira vista parecia uma casa velha, horrível e caindo aos pedaços, algo como se tivesse pulado de algum conto de terror Lovecraftiano. Thom olhou assustado e demorou cerca de um minuto para compreender, a casa não era nada disso, parecia bastante suntuosa e bonita, estava apenas mal cuidada, como se não tivesse ninguém morando ali há anos. O mato devia agora medir mais de dois metros de altura, a fachada tinha uma mancha enorme de fuligem, muitas teias de aranha, trepadeiras e algumas janelas quebradas participavam da paisagem do lar do Niilista. A placa que indicava o número da casa estava caída perto da porta de entrada, que no julgamento de Thom devia estar empenada.
Completamente incrédulo com a possibilidade de que alguém pudesse viver naquele lugar, Thom chamou pela razão e fez uma pergunta da qual já sabia a resposta, mesmo assim tinha esperanças remotas sobre a negação da mesma, ou que Bestial lhe abrisse um sorriso e falasse: "claro que não, ele mora nessa casa bonita do lado esquerdo, sim, essa verde".
- Ele mora aqui ?
Nem precisou esperar pela resposta, a porta se abriu revelando uma figura de aparência normal, cabelo arrepiado, corpo magro e muito branco, usava uma camisa amarela e uma calça bege, daquelas que em poucos segundos se transforma em bermudão. Sem muita cerimônia ele convidou os amigos a entrarem. Bestial foi o primeiro a entrar, enquanto Thom o seguia timidamente.
O interior da casa era ainda mais sujo e mal cuidado. Thom não conseguiu esconder o seu asco, em sua cabeça não entrava a idéia de que alguém morasse aqui, devia ser alguma pegadinha ou teste do Bestial, que nesse momento se sentava em uma poltrona praticamente sem estofamento, possivelmente teria sido devorada por uma "manada" de gatos, embora não tivesse visto nenhum gato até aquele momento. Thom não resistiu e se virou para perguntar:
- Você não se importa de viver aqui nessas condições ?
Bestial rapidamente pulou do sofá, levantou levemente a sobrancelha esquerda e com o lado direito da boca esboçou um sorriso, para Thom aquilo queria dizer que ele acertou em cheio na pergunta. Bestial se aproximou dele, o puxou pelo ombro e lhe disse ao pé do ouvido:
- Agora começa o show ou o discurso, como você preferir chamá-lo depois.
Uma voz imperiosa ecoou pela casa, fazendo gelar a espinha de Thom. Niilista se virou para os dois e começou.
- Me importar de morar aqui ? E pulou em cima de uma mesa, postada no centro da sala. E foi assim que começou mais um monólogo do Niilista.
- Me importar ? Pra que me importar ? Não, nunca, isso é uma arma para os mais fortes, nunca se importar com nada, casa imunda, animais trazendo doenças, e daí ? Estou correndo mais perigo que alguém em um hospital público ? Não! Eu como raíz de árvores, enchendo a boca de terra, corro perigo com os vermes ? Sim! Mas eu não me importo. Quando saio de casa costumo sentar a beira de uma jaqueira, aproveitando sua sombra que me esconde da claridade, algo insolente que me rouba a privacidade, imundície, me deixa vermelho e ardendo, sem vergonhice. Odeio esses répteis sapiens sapiens, que se queimam o dia inteiro no sol, falácia, achando que cumpriram sua função na sociedade para ficarem mais apresentáveis e vender seguros, ou então os mais honestos diriam que é para ativar uma vitamina vital ao seu organismo! Mentira! É para pegarem o carro do papai e fazer graça com as menininhas, meliantes hipócritas.
- Quando for decretado o juízo final, não que eu acredite nisso, eu não acredito, mas eu cito histórias que eu não acredito, não me importo, voltando ao juízo final, pessoas se tornarão ratos, se lançando ao chão, comendo o que Deus jogar, vão lamber suas botas sujas de lama, vão implorar pelo perdão divino, colecionarão auréolas como troféus e em momentos de desespero depenarão os anjos, enlamearão as penas e sujarão suas faces enquanto se contorcem em agonia e terror como no quatro o grito. E eu ? Enquanto eu estarei dando risadas comendo um hamburguer de uma grande corporação capitalista, essa maldição dos dias de hoje, em que tornou os homens dependentes de eletrônicos e toda sua tecnologia, afugentando as pessoas dos verdadeiros valores e conhecimentos da vida, mas juro que não me importo, prefiro continuar comendo o alface do sanduíche, que por incrível que pareça é a parte mais saborosa dele. E claro, ouvindo o meu som.
- Outro dia comprei um radinho de pilhas, nada de radinho, era quase um mega rádio, bateria possante. Deitei embaixo do viaduto ouvindo Pink floyd, os boxeadores todos olharam e aplaudiram, exibindo janelas e podridão, mas felizes da vida, aproveitando. Socavam geladeiras velhas, fazia um barulho ensurdecedor, mas respeitavam quando entrava um solo inspirado do Gilmor, a música dava forças, saltavam mais, suavam mais, batiam mais, o sparring sofria, a música incendiava os punhos, era notório o efeito benéfico. Um engomadinho, gravata vermelha, daquele tipo que corre o dia inteiro, estacionou o carro ali, me jogou uma moeda e ainda disse com a cara mais lavada do mundo:
- Gostei da música.
- Naquele dia eu fui para casa pensando no paradeiro da moeda: Padaria, pãozinho, troco pro dentista, passou pro filho ir brincar na lan house, troco pro menino de all-star, serviu pro ônibus, troco pra menina, ajeitou o cabelo, de lá de volta para a padaria, amanhã comprarei um biscoito e reaverei a moeda como troco, óbvio que não me importo com isso, mas é algo que eu creio que vá acontecer, poderei até aparecer em programas esdrúxulos do tipo: "Assim falou o Niilista".
- Berne na carranca!!! Berne na carranca!!! Fico pensando como pode uma desgraça dessas ? Se ela pudesse se defender com certeza faria um biquinho, se viraria pro lado e espantaria aquela indecência com um único e vigoroso sopro, onde já se viu macular uma entidade sagrada, moldada da mais sacra madeira e esculpida pelo mais hábil artesão. Sentiu ali a presença dos seres parasitários ? Como não ? Foi uma alegoria perfeita, se aproveitam da nobreza alheia, se alimentando de sangue e dor, os piores seres existentes na terra. Lama, caos, um pântano dos mais sórdidos na alma. Fui falacioso no começo desse tema, tentei enganar a todos mostrando que me importo, como foram ingênuos, quero estar comendo e rindo no dia do juízo final, Ahhhhhhhh!!!! Como eu adoro falar isso.
- Caros amigos, formigas são dignas de dominar o mundo, em apenas algumas horas elas carregaram uma porção de terra de um lado ao outro do quintal da minha casa, trabalho incessante que deixei para elas, as baratas ficaram despeitadas e sumiram, usei meu binóculo para acompanhar esse trabalho, deitado em minha cama, som baixo, inebriante, luzes imaginadas, nuvens sagradas e o trabalho das formigas, me causou uma pequena inveja de saber que elas iriam reconstruir aquilo vinte vezes se fosse preciso, quando esse trabalho terminou, tive uma idéia insolente: "Vou brincar de Deus", me levantei, calcei meu tênis e pisoteei o trabalho de minhas nobres visitantes, elas deviam ter ficado indignadas, com os braços levantados eu ainda gritei: "SODOMA E GOMORRA!!", Será que Deus fará isso no dia do juízo final ?
- Ultimamente tenho notado uma agitação inquietante, ninguém mais além de mim percebeu isso, vejo astros brilhando intensamente, acho que estão querendo me dizer alguma coisa, mas logo aviso que não sou nenhuma espécie de grey, muito menos falo com alienígenas e criaturas saídas de livros, mas o presságio é forte. Ouço os sinos tristes das igrejas, será possível isso ? Ouço os pastores com uma voz resignada e melancólica, nos terreiros de umbanda os trabalhos de fogo falhando, a cachaça se esvaziou antes de ser derramada, brincadeira do tranca-rua, cabra da peste, os tambores em ritmo pragmático. Irei me atirar na piscina, prenderei a respiração por mais de cinco minutos, se eu morrer quem se importa ? Nem se eu pudesse voltar para me importar eu iria, talvez no dia do juízo final ou quando tiver que prestar contas com o tinhoso, que Deus me proteja!!
- Os animais sumiram, minhas formigas que deveriam estar na sua quadragésima tentativa de montar o formigueiro sumiram, meus gatos sumiram e nem me deixaram um recado, não vejo mais moscas, mosquitos(que beleza), papagaios, gatos, baratas, aranhas, lebres, besouros, borboletas, minhocas, cobras e etc. Dizem que os animais são mais sensíveis que nós, que fogem antes de uma imensa catástrofe, como naquele tsunami em que morreram centenas de milhares de pessoas e nenhum animal, eles sentem como um único organismo, e nem nos avisam os danados, sinto vontade de agarrar uma barata pelas antenas e lhe gritar nos ouvidos: "Hey, para onde todos vocês estão indo ?". Baratas tem ouvidos ?
- Tive a impressão de ter ouvido um coelho branco me chamando, abri os olhos rapidamente, nunca consegui uma explicação para aquilo, puxa, descobri que era um coelho antes de vê-lo e ainda acertei a sua cor, acho que isso foi mais assustador que fato de ter ouvido um coelho falar. Ele queria que eu o seguisse, me senti como Alice no país das maravilhas, ou o Donnie Darko com suas crises de sonambulismo. Luzes brilhantes, flashes cegantes, quase fiquei catatônico, chuva de meteoros, faíscas, napalms, uma visão inquietante, doentes, famintos, sangue, sangue, muito sangue!!! A tempestada antes da bonanza, e que beleza de bonanza! Um lugar espetacular que o coelho me levou, uma autêntica visão do paraíso. Uma enorme cachoeira que brilhava como diamante, quebrava em umas pedras, mas não eram reles pedras, eram pedras de ouro, se eu fosse ganancioso ou me importasse com isso, sairia dali rico. Aquele maldito/bendito coelho olhou pra mim denovo, me apontou uma fonte, a fonte mais bela de todas e desapareceu, no mesmo instante me lembrei de uma música:
"Nessa fonte está escondida
O segredo dessa vida
Ainda que seja de noite..."
Corri até ela, despi minha roupa e mergulhei apenas de cueca, a água estava super refrescante e vi brilhar lá no fundo uma moeda, sim amigos, aquela mesma moeda, eu a reconheci. Mergulhei e segurei na palma da mão, foi quando a paisagem escureceu, caiu o pano e as imagens degradantes voltaram ainda mais fortes, uma sucessão de mazelas escabrosas, que fazia gelar o mais nefasto dos humanos, no fim das imagens, passou um letreiro que anunciava o fim do mundo, o dia do juízo final tinha chegado e eu passei a acreditar, eu era o porta-voz dele, quem diria, justo eu.
"Sei que são caudalosas as correntes
Que regam os céus, inferno
Regam gentes
Ainda que seja de noite!" **
- Acabei acordando sem saber o que fazer, a essência da vida passou pelas minhas mãos e fui incapaz de perceber em tempo, a fonte foi minha última chance de redenção com o mundo, a chance de salvar a todos, de me tornar o herói, de apertar o botão do save, ter meu rosto estampado em todas as capas de revistas e jornais, pretensioso eu ? Nunca, simplesmente não me importo, queria salvar o mundo apenas para continuar não me importando. O dia do juízo final chegou, já ouço as trombetas.
- Saio de casa, último dia da humanidade, vejo pessoas felizes e sorridentes, outras mendigando, umas com a cara amarrada e discutindo. Tenho vontade de gritar o fim do mundo para todas elas, mas seria maldade minha, o espírito de porco do mundo, lunático em roupa de roqueiro, queria estar comfortably numb na minha poltrona, injeções de adrenalina não iriam me animar, pelo menos não hoje que estaria sentindo minhas mãos como dois balões. Poderia ser essa música a trilha sonora do último dia. Nesse momento alguns enjalecados estão levantando uma capinha de plástico, olhando no monitor, escolhendo no mapinha e pressionando o botão vermelho, por quê sempre são botões vermelhos ? Gostaria que tivessem outra cor, como amarelo ou cinza, mas creio que não seja protocolar, mas nada disso importa, o que importa é que estamos a poucos minutos da destruição. Minuteman 3, Topol-M, DF-5A, M45, Trident 205, Agni 2, Shaheen 2, Jericho 2, Taepo Dong, Shahab 3, as ferramentas do juízo final. Entro numa lanchonete, peço um hamburguer sem a carne e com três folhas de alface, me sinto como um condenado a morte, prestes a saborear a última refeição. Avisto uma linda jovem acabando de falar no celular, me aproximo dela e pergunto:
- Você quer transar comigo ?
- Ficou maluco ?
- Recebo isso como um não.
Ela se afasta de mim, em meu imaginário ela estava pensando na pergunta. Ouvi sons de explosão: BUM!!! BUM!!! BUM!!! BUM!!! Tinha começado, eu e ela corremos para fora da lanchonete, nem poderei morrer com a barriga cheia, azar. Enquanto eu olhava a paisagem, apareceu aquela nuvem carregada de veneno e destruição, a última coisa que me lembro de ter feito foi ter abraçado aquela jovem magra e loira, que estava na minha frente, quase implorando por um contato mais próximo, a luz muito forte me cegou, a areia chegou a me arranhar por frações de segundo, quando o mundo terminava em um abraço...
** Trecho da música "àgua viva" de Raul Seixas.