Histórias Recorrentes

Dez dias se passaram. Franz voltou pra sua cidadezinha na Áustria, contou para a família o que fazia no Brasil fora de seu trabalho de representante comercial, foi perdoado, pediu demissão da empresa e procurou ajuda para tratar-se da dependência de cocaína.

E em Santa Catarina, começavam a voltar, muito lentamente, os dias de calor. Em Florianópolis, no primeiro feriado prolongado que teve, houve um ensaio para o verão, as ruas do centro histórico receberam alguns turistas, nenhum argentino ainda, mas já haviam alguns paulistas e gaúchos na cidade, aproveitando as promoções das empresas aéreas.

Seu Hercílio olhou do balcão da sua casa, na rua dos Ilhéus, no centro histórico, com satisfação, o amanhecer trazer consigo alguns grupos e famílias de turistas madrugadores que aproveitavam as ruas no entorno da Praça XV ainda estarem pouco movimentadas para fazer sua caminhada mais tranqüilamente. Seu Hercílio era metódico e costumava acordar cedo todas as manhãs, de domingo a domingo. Era a disciplina adquirida antes mesmo do serviço militar, já no Colégio Militar. Seu pai fora militar, contava até ter estado ao lado do marechal Deodoro, quando da deposição do imperador Pedro II e da Proclamação da República. Após o Colégio Militar, seu Hercílio viu com naturalidade seu ingresso na Escola de Sargentos do Exército, por volta de 1940, e dois anos depois se candidatou voluntariamente para a Força Expedicionária que estava se formando para lutar na II Guerra Mundial. Em 1943 foi para a Itália, já como tenente, lutou bravamente, acreditou realmente ter ajudado a derrubar o governo fascista de Benito Mussolini, enfrentou algumas tropas alemãs no norte do país, e voltou como herói, desembarcando em 1945, no Rio de Janeiro, então capital federal, recebeu até uma medalha das mãos do próprio presidente Vargas.

Depois voltou a Florianópolis, e não mais viajou para muito longe da cidade onde nasceu, nem mesmo como turista. Casou-se com Vânia, uma antiga namorada, e a levou para morar na casa que havia sido de seus pais, na rua dos Ilhéus, próximo da Praça XV. Também nunca se mudou, morou naquela mesma casa desde que nasceu. Vânia também era filha de militar, de forma que também era metódica e acostumada com a disciplina. Tiveram dois filhos, um garoto e uma garota, ambos bem pouco afeitos à disciplina e ao respeito pela hierarquia. O rapaz saiu de casa aos 17 anos, não queria saber muito de estudos, foi trabalhar numa transportadora, depois tornou-se caminhoneiro. Acabou morrendo num acidente na BR, quando fazia o caminho de Itajaí para Santos, em São Paulo. A moça ainda terminou os estudos, fez faculdade de direito, passou num concurso público, para trabalhar no Tribunal de Contas e foi morar em Brasília, na nova capital federal. Não a viu mais, apenas recebia cartas, no Natal e no Dia dos Pais.

Em 1974 dona Vânia faleceu. Foi a única vez em anos que viu a filha. Ela não quis voltar para Florianópolis, havia se casado com um militar em Brasília – isso fez seu Hercílio sorrir com a ironia – e já haviam adquirido um apartamento na asa Norte. Ela lhe convidou sem muita convicção para morar com eles. Seu Hercílio preferiu continuar na casa da família na rua dos Ilhéus mesmo.

Depois que Vânia morreu, seu Hercílio passou a fumar mais do que antes, mas não muito mais, mesmo para fumar seu velho cachimbo, ou seus charutos de Havana, havia um ritual, uma disciplina, com horários e tudo o mais. Nunca fumava antes do meio-dia, cachimbo, fumava apenas à noite, após o jantar e o telejornal da noite, quando sentava-se na poltrona da sala para ler o jornal, ou um livro. Seu Hercílio tinha dois netos, a quem não conhecia, mas que lhe mandavam cartas de vez em quando, um rapaz, que estava quase em idade de entrar para o serviço militar, e indicava ter algum interesse em seguir a carreira, lhe mandava todo tipo de pergunta, principalmente sobre os tempos de guerra, e uma menina, adolescente, sonhadora, dizia querer ser jornalista, ou escritora – como uma escritora mórmon da moda, de quem a menina lhe enviou um livro. Quando leu as primeiras páginas, seu Hercílio sorriu. Sabia de alguém que não ia gostar nada do livro. Lembrou-se, então, duma notícia que vira no telejornal das sete e meia da noite, dum curioso caso ocorrido no Norte do país. Tanto o livro enviado pela neta quanto a notícia lembraram-lhe de seu amigo. Haviam encontrado apenas um alemão sozinho num quarto de hotel para encontros no centro de Manaus, não encontraram mais ninguém com ele, nem a moça que ele arrastara pra lá, nem o tal sujeito que teria estourado a cabeça dela, provavelmente com um tiro.

Seu Hercílio lembrou-se de quando conheceu o estranho homem com nome de anjo. Apenas o nome, costumava pensar. Numa noite de verão, em 1983, estava de seu balcão olhando o movimento de turistas, alguns se recolhendo, outros chegando ao centro da cidade, japoneses do interior de São Paulo tirando fotografias em família em frente a sua casa. Ele fumava seu cachimbo, com um ótimo fumo importado. O movimento ia diminuindo aos poucos naquela parte do centro, as pessoas vinham da direção da praça XV, ou da catedral metropolitana, passavam alguns jovens em buggys com suas pranchas para a prática do surf, provavelmente vindo da praia Joaquina, ou da Brava. Sentiu um calafrio, e presumiu que se tratava duma brisa noturna, embora o calafrio tenha sido sentido na base da espinha. Imediatamente levantou-se da sua cadeira alta de praia e saiu do balcão. Ficou alerta de repente, os cabelos de sua nuca eriçaram-se momentaneamente, parecia um instinto que o fizera escapar de poucas e boas, durante a guerra, na Itália. Caminhando lentamente, com cautela, atravessou o quarto, observando cada luz, ou cada sombra, como se procurasse um movimento estranho. Esperava que talvez fosse apenas uma impressão, mas se não fosse, preferiu preparar-se para enfrentar um ladrão, ou assaltante. Foi até o roupeiro, abriu uma das portas, e da primeira gaveta, de entre as meias puxou sua pistola Magnum, observou o pente de balas, recolocando-o na arma. Atravessou o corredor, desceu as escadas, passou pela sala, sempre lentamente, com cautela. Quando pôs o pé na soleira da porta da cozinha, espantou-se, ao dar de cara com a figura longilínea de um rapaz, ou uma moça, um ser andrógino, muito pálido, de cabelos longos e avermelhados, e um estranho olhar, olhos também avermelhados, a parte escura de suas pupilas parecendo os olhos de um gato. A estranha figura sorriu maliciosamente, abriu a boca, mostrando os caninos grandes e afiados. Antes que Hercílio pudesse apontar a pistola para a criatura, esta já estava sobre ele, tentando fincar os caninos em seu pescoço. Ele conseguiu empurrar o rapaz, ou a moça, para longe com uma das pernas, e quando tentava recompor-se, o vampiro agarrou-se novamente a ele com uma velocidade incrível. A criatura chegou a encostar seus dentes em sua garganta, mas não o mordeu, ele a viu praticamente voar, atravessando o cômodo, rachando o concreto da parede e caindo pesadamente no chão. Olhou uma sombra a seu lado, levantando os olhos lentamente, percebeu outra estranha figura. Um rapaz, cabelos curtos, castanhos claros, um pouco desgrenhados, metido num sobretudo escuro e antigo, apesar do calor, calçando sapatilhas e uma calça do que parecia seda preta. Seus olhos eram estranhos, ele procurou ver o branco dentro deles, mas não viu. Presumiu que fosse pela luz fraca da lâmpada incandescente. Ouviu a criatura andrógina sibilar como uma serpente, saltando sobre seu estranho protetor numa velocidade impressionante. Não conseguiu ver como, mas viu aquele ser cair pesadamente sobre o piso da cozinha, quebrando-o com o próprio peso, e viu a cabeça dele explodir, mas desta vez sentiu o cheiro de pólvora, viu o cartucho de uma pistola 9mm cair no chão, a seus pés. Levantou os olhos e viu enfim, os olhos do rapaz, muito negros, aparentemente sem brilho nem reflexo, seu olhar penetrante que parecia atravessá-lo parecia também curioso. Estendeu-lhe a mão para ajudá-lo a levantar. Ajudou Hercílio a ficar de pé, e este ouviu pela primeira vez a voz do rapaz, grave e profunda, tranqüila, a dizer com o típico sotaque dali de Florianópolis “desculpa os estragos, não teve outro jeito não, seu Hercílio” O homem sorriu, de alguma forma compreendia como o rapaz podia saber seu nome, há meses estava sentindo uma presença estranha em sua casa, e também que quando fumava seus charutos, ou seu cachimbo, não estava fumando sozinho. Lembrou que a mãe lhe contava histórias, sobre parasitas noturnos, pareciam pessoas comuns, mas na verdade eram criaturas que ligavam-se a pessoas que tivessem o hábito, ou de beber, ou de fumar, ou fazer o uso de outras drogas. De repente lembrou-se da vampira morta no piso da cozinha. O rapaz sem falar nada levantou o corpo como se não pesasse mais nada, colocando-o sobre o ombro. Deu um sorriso um tanto triste, dizendo que não se preocupasse, que daria um jeito. Dito isto, sumiu com a mesma rapidez que aparecera. Sentindo-se meio sonambúlico, seu Hercílio atravessou a cozinha, passou pela sala, subiu as escadas, voltou para seu quarto. Deitou-se, ligou a tevê, coisa que ele não costumava fazer após as 10 horas da noite, mas não prestou atenção em nenhum programa, só pensava na visão daqueles dois vampiros se digladiando em sua cozinha. Pegou no sono, acordando sobressaltado, com o som do despertador. Contrariou mais um hábito seu, pela primeira vez, ao levantar-se, acendeu um charuto. Ao começar a fumar, sentiu novamente que não estava sorvendo sozinho o fumo. Ouviu novamente a voz do rapaz dizer, desta vez: “Não se preocupe, seu Hercílio, eu posso concertar os estragos” “Não estou preocupado” ouviu-se retrucar, fitando os olhos negros do estranho rapaz. “Sei que salvaste um velho usuário de tabaco que tu parasitas, mesmo assim te agradeço, moço” O rapaz sorriu, um sorriso triste e divertido ao mesmo tempo. “Na verdade eu só matei uma sanguessuga... mas fico feliz em ter ajudado uma pessoa.” Estendeu-lhe a mão num cumprimento. Seu Hercílio retribuiu o cumprimento. “Meu nome é Youth” disse o rapaz com sua voz quase sem entonação, “Gabriel Youth.” Hercílio apertou sua mão mais efusivamente, sorrindo. “Gabriel Youth! Pois muito agradecido, rapaz. E seja bem-vindo à casa do major Hercílio de Cruz e Souza”.

Ayrton Mortimer
Enviado por Ayrton Mortimer em 13/10/2009
Código do texto: T1864339
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