Fim
A longa fila se estendia do infinito. Quase todos ali eram iguais. Homens, mulheres, crianças vestiam a mesma túnica branco-amarelada. Apenas dois personagens estavam diferentes, um usando sua longa capa negra e outro com uma túnica tão branca que poderia estar iluminando algum local escuro.
Ladeando a infinita fila, homens-rapoza com grandes lanças rosnavam e brandiam as grandes armas.
No inicio da fila, um homem esperava por sua vez. À sua frente, uma enorme balança pendia mais para a esquerda, porém não havia nada sobre seu prato. Um dos guardas-rapoza posicionou-se em frente ao homem e cravou-lhe a lança em seu peito. Este não se mexeu, enquanto a lança era movida, quebrando costelas e moendo sua carne. Retirou de forma brutal a arma pontiaguda e em sua ponta, um grande coração pulsava energicamente, parecendo saber o que viria a seguir.
- Coloque o coração sobre o prato direito! – ordenou uma voz.
O guarda retirou o músculo da lâmina e o depositou sobre a superfície lisa do prato da direita. De imediato, a balança pendeu rapidamente para a direita, fazendo grande estardalhaço ao bater no chão empoeirado.
- Coração cheio de ganância por poder. – a voz se aproximava, saindo das sombras da balança. Uma figura negra e alta, de túnica impecavelmente limpa e usando uma coroa atef. Em suas mãos havia um hekat e um nekhakha. Osíris olhava para o humano com desprezo. – Seu coração não é digno de ser cortado pela lâmina da espada honrada. Apenas servirá de alimento ao cão do inferno, e sua alma será retalhada para nunca mais voltar.
Nenhuma reação veio por parte do humano. Este apenas se deixou guiar pelos guardas de Osíris para um grande portão de pedra. Hieróglifos compunham todo o enorme bloco de concreto, formando desenhos de um enorme animal de três cabeças e pessoas sendo “doadas” à ele.
Em seguida, as duas figuras que se destacavam na fila se aproximaram de Osíris. Olhavam com indiferença para o Deus egípcio.
- Apesar de serem Deuses, serão julgados do mesmo jeito dos humanos. – o desdém estava estampado no rosto de Osíris. – Os próprios humanos os mataram, não? Guerras, igrejas, a modernidade. Vocês foram mortos pelos próprios seres que os idolatravam.
- São seres sem inteligência, sem crenças, hipócritas. – dizia o ser de capa negra. – Por que acha que o pacto é o melhor modo para algum contato? Mesmo depois de um acordo, eles ainda duvidam de nossa existência. São gananciosos por natureza.
- Mas e os humanos que eram devotados à mim? Eles não percebem que não podemos fazer nada. Quando ocorre alguma coincidência, dizem ser um “milagre de Deus”.
- Você é hipócrita também, Cristo. Só não faz as coisas acontecerem por medo de ser como eu, aquele a quem todos recorrem quando “o carinha lá de cima” não atende aos seus pedidos ridículos. Confesse.
- Você também é tão ganancioso quanto os humanos, Lúcifer. Sempre querendo suas almas maculadas.
- Mas eu não neg...
O demônio parara de falar. Apenas sentiu um solavanco em seu peito e olhou o cabo da lança cravada nele. Não sentiu dor alguma. Um puxão e o músculo saíra. Um coração negro palpitava na ponta da arma branca.
- Me traga o coração do outro também! – ordenou Osíris.
Obedecendo prontamente ao pedido, o guarda cravou a lâmina no peito de Cristo. Esse não se mexeu, muito menos se apavorou. O som de suas costelas sendo quebradas podiam ser escutadas por Lúcifer.
O guarda continuava remexendo a lança, mas sem tirar coração nenhum do peito de Cristo.
- Não há nada aqui, senhor! – disse o guarda, enquanto começava a suar.
O olhar severo de Osíris causou certo desconforto. A lâmina se movia com maior intensidade, rasgando a carne sagrada.
Retirada a lâmina, não havia coração pulsando em sua ponta. O buraco negro e rubro estava vazio.
- Onde está sua culpa, Cristo? – Osíris olhava com a sobrancelha erguida para o peito estraçalhado.
- Não percebe, Osíris? Meu coração não é mais meu. Os humanos o pegaram de mim para terem fé. Cada um que era um religioso devoto a Jesus, tem um pedaço de meu coração. Não era eu quem estava no coração dos humanos. São eles quem têm meu coração dentro deles.
- Ou seja, os religiosos te destruíram mesmo com um pedaço de você dentro deles?
- Isso. Não há mais pelo que ser ovacionado por eles, aqueles que clamavam por misericórdia e faziam juras de amor por mim. Se perderam dentro de si. Autodestruíram-se.
Lúcifer olhava incrédulo para Cristo.
- Finalmente abriu os olhos, meu caro. – disse o demônio para Jesus, abrindo um sorriso irônico.
- Não há ser que seja digno de nossa benção.
- Já que entramos em comum acordo, o que vem agora, ó deus da Morte? – desdenhou Lúcifer.
- Já deveriam saber. Coloquem o coração de Lúcifer na balança!
O coração negro pulsava rapidamente. Posto na balança, não pendeu para nenhum lado. Se equilibrou.
- Apesar de ser ganancioso, sempre cumpriu com sua palavra aos humanos. Seus acordos sempre foram bem-vindos para eles. Receberá a lâmina da espada honrosa, mas ficará eternamente preso e cairá no esquecimento. Já Cristo...
“Você voltará para presenciar o fim da raça que o acolheu como Escolhido. Assim que eles se destruírem, você voltará para receber o cão do inferno. Os atos dos humanos em ser tudo ‘em nome de Cristo’ fez com que corrompessem suas almas e seus corações. E você apenas os observou enquanto pediam pela ajuda divina. Entende sua parcela de culpa, Cristo?”
*****
E Cristo apenas observou toda a raça humana desenvolvida, inteligente, de fé no que acreditavam, se destruírem. Não sabiam eles que seu Escolhido estava apenas assistindo suas guerras, seus desesperos, suas ganas, seu fim. O fim de uma raça e de um Deus.