O Cadáver do Duende
Assim de leve, como um satélite que pesa sem deixar de flutuar, minha mente tão raramente lúcida é fisgada por um sussurro de Perséfone, aquela vaca, e sou transportado para o meu Jardim High-Tech. Vocês já ouviram falar dele, é onde planto meus cadáveres.
Porém, dessa vez não foi um dos meus que vi brotar da terra. Não... Estava lá, estirado de bracinhos abertos e linguinha pra fora como um siricate do Rei Leão, um maldito cadáver de Duende-Cor-De-Rosa. Essa praga que já tanto amaldiçoeei por aqui, que tanto fuça em meus domínios, que tanto quis matar, trucidar, exorcizar, e que nada adiantou, esses escrotinhos do Angeli, essa merda que empesteia meus pastos verdejantes, um redundante e fosforescente Duende Cor De Rosa. Tava lá, morinho, um cadáver de duende.
Eu que sempre quis matá-lo, vejam só, agora ao vê-lo ali, esticadinho feito uma lagartixa, sei lá, bateu um remorso disfarçado de peninha dele. Quese chorei, se em meu rosto houvessem lágrimas. MAs não há. Muita coisa falta em meu corpo.
E o Duende, fiédamãe, lá, todo durinho, olhando pra mim dois olhinhos vidrados. Fora assassinado?
Não, não... parece morte morrida mesmo, não morte matada. Sei lá.
Ia estender a mão pra pegá-lo, mas vieram então da terra, do fogo, da água e do ar, uma série de outreos duendes, não só Cor De Rosa, mas de todas as cores. Ora essa, eles sempre se esconderam de mim, mexendo no meu jardim enquanto eu distraído jogava video-game, agora estavam todos perfilados, vindo numa marcha fúnebre, bem frente a meu nariz.
Vieram, sem nem ao menos me notar ou fugir assustados de Mim-Gulliver, gigante na terra dos duendes. Esnobaram minha presença como poucos o fazem, apenas carregando o cadaverzinho do diminuto duende (olha o pleonasmo).
Ele tinha nome, esse pequeno Satan que por tanto tempo me atormentou? Se tinha não estava na lápide, que era apenas uma pedrinha lisa entre a violeta e o condomínio BE HAPPY, que contrui com exímia arquitetura para as formiguinhas e continua desabitado, às traças, até hoje. Lá, num buraquinho de um palmo enterraram o finado amigo, em sua roupinha de Peter Pan, sua pele rosa-bebê já até meio empalidecida. Enterraram lá aquele banquetre pra meia dúzia de vermes, se é que ao menos vermes habitam aquele condomínio. Tô realmente ofendido pelo condomínio, construí com o maior esmero, com visão panorâmica e tudo, elevador de serviço e um besourão na portaria que me deu o maior preju no Ministério do Trabalho. Magooei mesmo, mas isso não vem ao caso. Vamos nos ater ao velório que prossegue sem muita cerimônia.
Deveria eu dizer alguma coisa, quem saber fazer uma oração?
Bah, não quero interromper nada. Parecem tão resolutos em seus ritoas pagãos ali, sem caixão nem velas, só um buraquinho que mais parece um pila de bolinha de gude.
Queria dizer que já o conhecia de longa data, desde a inauguração desse jardim, que o diabinho me pentelha desde sempre com suas fuçações noturnas. Mas não disse nada, apenas apreceei em silêncio aquele ritual bonitinho e comovente.
Depois de cobrir o buraco com terra e meia colherzinha de adubo (do MEU adubo, que era para as cebolinhas!), plantaram encima uma linda florzinha azul, que até agora estou por entender onde eles conseguiram.
De noite, quando o ritual acabou e os duendes estavam mais uma vez escondidos sabe-se lá onde (o condomínio BE HAPPY, quem sabe?), eu fui lá e pratiquei uma heresia e uma blasfêmia ao mesmo tempo, movido pela curiosidade e não por qualquer outro ímpeto anárquico que eu venha a ter, deve-se entender. Fui lá e cavuquei a covinha com a ponta do dedão. E não havia mais nada lá, nem ossinhos nem vermes, nem roupinha de Peter Pan. Só a raiz da florzinha, que crescia forte apesar do curto prazo de tempo.
Então eu sentei, peguei meu velho e antológico saquinho de bolinhas de gude, e me puz a jogar com a alegria de uma criança, uma por uma, naquele redondinho Pila, que era um túmulo.
Saudades do meu Duende Cor De Rosa. Descance na Paz de Gaia.