Além do flerte

Não havia nada para fazer naquela tarde. Os filhos estavam com os respectivos padrinhos na Bahia, a mulher cuidava da mãe que fizera uma cirurgia plástica nos seios. Andava pelo calçadão da Rua da Frente e imaginava, irônico, que jeito poderia ser dado em seios de oitenta anos. Mas... bem... todos têm o direito de sonhar com o impossível. O sonho sustenta o ser, alimenta o nosso estômago de futuro. O calçadão da rua era novo. Sentado ao banco recém pintado, percebi que tudo continuava velho. Na ponte do Imperador uma mulher jazia em profundo sono. Ao lado, uma criança feia de fome e de maltratos ressonava no pleno sol das quinze horas. Entretanto, as luminárias, o calçadão, os bancos... tudo feito para que pessoas como eu pudessem caminhar sob rígida orientação médica. Os miseráveis insistiam em manchar as grandes inaugurações.

Tomei clara decisão: que dormissem os miseráveis! Eu não poderia resolver os problemas do mundo. Era hora de aproveitar o final da tarde de sexta-feira. Era aniversário de Aracaju. Iria, então, vivê-la um pouco distante do automóvel com ar refrigerado. Viveria a cidade de ônibus. No terminal da Rua da Frente peguei o Lourival Batista e desci no antigo Cine Plaza, no bairro Siqueira Campos. Um pastor grandiloqüente insistia na necessidade de se buscar Deus. Enquanto ele implorava pela oração dos seus irmãos, segui em direção à praça. Adiante uma multidão impedia a passagem dos carros. Um zunzunzum se formava. Aproximei-me. Uma mulher de vestido vermelho, cabelos ligeiramente oxigenados. O batom avermelhava os lábios já vermelhos do sangue no asfalto. O sapato de salto alto já quebrado era vermelho sem sangue e a pele morena das pernas não mais permitia depilação. Na face não mais vislumbrava a esperança de encontrar o endereço que a mão segurava: Rua Carlos Correia, n.º 103. Olhei fixo para aquele corpo sem alma. Nem percebi o desespero do atropelador. Só vozes e gritos:

- Você tem seguro, companheiro!

- Fuja, seu burro. A mulher tá morta!

Pensava comigo que a morte era algo insano, inaceitável, enquanto um policial chegava para registrar o fato já sem a presença do infeliz motorista sem seguro.

Resolvi continuar minha viagem e peguei o ônibus para o Augusto Franco. Estava lotado. Para onde iria tanta gente?

- É um comício que vai ter na praça do Augusto Franco. Não viu não anunciar na TV Sergipe? O Governador vai iniciar o término das obras. Vai ter show com Amorosa e Patrícia Polaine.

A informação me foi passada com requinte pelo cobrador que ostentava uma camisa de propaganda do Governador. Agradeci-lhe e desci no ponto com a multidão.

O locutor bradava frases preparadas pelas agências de publicidade e anunciava o comício para instantes. Começou uma hora depois. Políticos massacravam microfones e acariciavam o ego ferido do povo desatento ao evento. Após duas intermináveis horas, Amorosa sobe ao palco. Depois de um parabéns para a cidade e dois bons forrós, a voz desaparece. O locutor anuncia o fim do show e o lamentável incidente. Mas ainda tem Patrícia Polaine. Meia hora depois, após um insistente Harmonia eletrônico, chega a notícia da impossibilidade de a cantora realizar o evento. Não deram maiores explicações, mas informação extra-oficial circulava comunicando que ela se negava a cantar porque não recebera pagamento dos shows anteriores.

Já era muito tarde para continuar andando por aí. Pensei num lugar em que encontraria mais música. Atalaia! Sim. Caminhei decidido para a avenida Heráclito Rolemberg. Lá já vinha o Bugio/Atalaia. Na orla senti a noite branda e a brisa que forrava o asfalto esburacado da areia da praia.

Andei um pouco pela calçada habitada e percebi que havia música ao vivo num bar. Não verifiquei o nome. Estava quase lotado. Luiza Lu poetava Chico Queiroga e afins. Um garçom fatigado me trazia uma cerveja gelada com cardápio de caldinho de sururu. Quando o forró imperou sob o balançado tímido de Luiza, muitos dançaram. Percebi que uma moça pernoitava solitária por entre doses de vodka. Nossos olhares... bem, foi inevitável. É de se compreender que eu estava momentaneamente solteiro, livre, desimpedido, carente. Minha consciência era compreensiva. Minha mulher não! Mas ela estava tão preocupada com a mãe e nunca fui de cometer tais atos. Mas ali estava uma mulher bonita dos diabos a encarar apaixonadamente um reles senhor de seus cinqüenta anos. Eu ainda despedaçava corações! Por um momento passou pela minha cabeça que tudo aquilo era canalhice. Minha mulher não merecia aquilo! Claro que não. Mas e eu? Eu não merecia? Talvez não, mas isso não importava naquele momento. Eu estava vivendo um flerte. Um flerte aos cinqüenta anos! O último que eu vivera aconteceu quando o Itabaiana venceu o Internacional em pleno Beira Rio. Foi lá que eu conheci minha mulher.

Enquanto eu pensava nos prós e nos contras, ela já pousava diante de mim com turbinas e tudo o mais. Era belíssima, com ar soberano, corpo atlético e jeito absolutamente insinuante. Não poderia ser verdade. Era bonita demais:

- Posso sentar?

- Sinta-se em casa.

A voz era meio grave, mas denotava meiguice. Não quero aqui detalhar diálogos e pormenores desses encontros. Normalmente são recheados de conversas banais. Ambos ficam esperando a hora certa de dar o golpe fatal e fazer a proposta indecente. Ambos também fingem que são caçadores e não caçados. Quando se me dei, já estava envolvido nos braços dela. Bebi vodka em sua boca e os beijos e abraços foram temperados com a areia da praia de Atalaia. Estávamos quase nus. Iniciei o processo antropofágico e minha mão foi além do habitual. Os seios eram rígidos, siliconeados. Fui buscar os pequenos e grandes lábios de uma boca murmurejante de lamentos lascivos. Não encontrei o que queria.

- Seu desgraçado!

Com um murro certeiro, coloquei-o onde ele se encontrava: na areia. Sai catando minhas roupas e correndo desesperado. Ouvi apenas gritar:

- Volte aqui. Estava tão bom!

O desgraçado era um eunuco. Eunuco e gay! Pequei o primeiro táxi que encontrei e paguei corrida dobrada. Em casa, já pela madrugada que se ia, liguei para minha mulher.

- Flora, eu te amo. Estou morrendo de saudades!

Nunca essas palavras foram ditas de forma tão sinceramente profunda.

(Landisvalth Lima - Contos levemente amaros, inédito)