O QUE ELE QUERIA.

Antônio sempre preferiu andar sozinho; “Sozinho os problemas são meus”, dizia ele, nunca dividia nada com ninguém. O velho rabugento que passava o dia esperando a noite onde o céu se rodeava de estrelas brilhantes trazia alguma lembrança. Apenas observava da janela. Com a exaustão em seu corpo e os pés frios, balbuciava algumas palavras inaudíveis para as pessoas que ainda insistiam em lhe acenar da rua, mas seu olhar se fixava ao movimento da lua, e, se por um segundo uma nuvem a cobrisse, ele fecharia a janela e iria dormir.

Antônio já não dividia suas conquistas ou perdas assim como a lua dividia o céu com as estrelas, quando a noite caía, repetia o ritual na janela e as vezes quando o sono lhe faltava, lia um livro velho que achara jogado perto da sua porta. Já quando batia a meia noite e a rua parecia calma, o velho levantava os óculos que escorregava sobre o nariz e caminhava lentamente para a cama, deixando o livro ali mesmo perto da janela.

Os lençóis fedorentos lhe tapavam imediatamente a respiração. O quarto se envolvia na sombra e no silêncio do mundo, os quadros da parede não tinham cores e as lembranças da juventude dormia sobre um criado mudo esburacado, os poucos filetes de luz clareava a poeira que vagava pelo quarto como uma névoa perene. O velho olhava fixamente para o teto na busca de algum sentido para este ato de sua vida, mas não restava nada, não havia sentido, nem os personagens do livro, nem as estrelas da noite, assim como também as dores do seu corpo.

Quando o sol matinal engolia o breu do quarto mofado, Antônio acordava com orgulho, para ele, lhe alimentava a ideia de responsabilidades suas, de responsabilidades sozinhas, talvez fosse o que ainda lhe mantinha vivo, essa felicidade envolvida a ilusão de não necessitar de uma terceira mão, as outras pessoas não têm isso, as pessoas; pensava ele, vivem numa dependência de outro, e não estão ilesas a dor da perda. Um aceno com a mão era suficiente, mas os vizinhos deixaram de perceber o Antônio, talvez pela impossibilidade de entender o seu balbuciar, ou talvez a felicidade que morava no velho não tinha o mesmo significado para as pessoas comuns.

Antônio sempre preferiu a companhia de sua casa, pisar fora, só se fosse uma emergência. Seu casebre não era dos mais requintados, mas para ele servia, usava jornais velhos como cortinas, isso aplacava o excesso de luz, deixando o ambiente com uma meia escuridão que acalentava os olhos. O cheiro de mofo já não lhe afetava o olfato, nem mesmo as sujeiras acumuladas no canto da parede. Tinha poucos afazeres domésticos, nem tinha idade para certos trabalhos, por isso tentava ao máximo, não bagunçar e nem se sujar muito, ele acabou se acostumando com a vida que levava sem que para isso tivesse que recorrer a outros.

Antônio gostava de observar as crianças que brincavam na praça em frente, para ele, era como se o que estivesse no espaço descesse para lhe fazer sorrir com memórias que guardava dentro de si. Talvez sua infância tenha sido o momento mais dourado de sua vida, e a janela do fim de tarde lhe trazia essas memórias. Ele não era destes rabugentos que detestava crianças, mesmo hoje velho e sozinho, lhe acalenta as antigas fotos da família na parede, e sentia-se feliz por saber que cada um seguiu seu próprio caminho.

A noite chegava, bela e sombria como manto escuro que forrava a casa velha e empoeirada. O barulho noturno de fora tinha outro sentido, e os amores passados relampejavam na mente do velho que tentava inutilmente dissipar aquele rosto meigo que lhe perturbava o pensamento acendendo um charuto e lendo o livro velho e sem capa que ficava jogado de mesa e mesa por onde ele mais passava na casa, corroído pelas traças, as histórias que ali havia, eram repetitivas e solitárias, ele balbuciou uma meia palavra e foi dormir.

Logo quando amanhecia, ia aguar uma flor que encontrara a margem de um esgoto, o fato que o levou a trazê-la, foi que depois de muito tempo, ele percebeu que ervas daninhas já estavam para partir o caule dela ao meio, viu metáforas da vida, um ser infeliz num canto escuro, sendo consumido pelo desconhecido, sugando-lhe o néctar de uma pura e virginal flor como abraços maquiavélicos. Então, essa flor era mimada e foi colocada num belo vaso e todos os dias tinha a atenção do velho que a salvara.

Seu Joaquim era o dono da padaria, considerava Antônio um sujeito excêntrico, gostava dele, mesmo ele nunca sabendo disso, para ele, a vida do velho triste e sozinha, era como uma poesia, repleta do que se teve, lírica em sua própria melancolia. Como de costume, quando Antônio se aproximava, seu Joaquim tentava fazer o velho se animar, mas ele era de poucas palavras e quase nada dizia, sempre reclamava dos outros, das perdas e da coluna que doía, reclamava do pão anterior, e a conversa assim se resumia.

- Um Pão.

Quando caminhava de volta, um mendigo o parou para pedir-lhe.

- Um pãozinho.

- Só isso, um pão?

Seu Joaquim o observava de longe para ver se ele realmente daria, também uma criança de rua parou no mesmo momento e pediu.

- Um pão.

Antônio não negaria, mas ficou a matutar sobre o que eles comeriam no outro dia, os problemas eram sempre deles e Antônio não tinha que se importar com essas coisas, não tinha que se importar com nada que mudasse sua rotina, além da flor. A vida repetitiva e ritualista de Antônio era inquebrável. Ele deu o pão, mas lhe incomodava o fato de ter esquecido de pôr água em sua planta naquele dia quente.

Seu Joaquim, o dono da padaria, poeta desde de sempre, voltou para casa naquele dia, com uma ideia fixa na cabeça; o quanto o pouco pode ser muito, o sorriso daqueles dois moradores de rua, e a ferocidade com que comeram aquele pão, isso o mostrou de certa forma o quanto a felicidade pode ser barata, simples ou de atos simplórios, ele mesmo já havia dado pão várias vezes, assim como pedaços imprestáveis que se desprendia dos bons, mas nunca tinha visto de longe como um observador astuto o efeito dos gestos. Caminhava tranquilamente com um punhado de milho no bolso, e sentou-se um momento como de costume no banco da praça para observar os pombos que esperavam assustados algum resto de comida.

As crianças brincavam na praça naquela hora, corriam, faziam barulho, subiam de árvore em árvore, se escondia por trás dos palanques, enquanto outros brincavam de bola onde havia mais grama, as meninas deitavam sobre o jardim florido e conversavam bobagens de criança, outros corriam atrás dos pombos que faziam uma algazarra na disputa pelo milho.

Fazia dois dias que Antônio não aparecia na janela, somente as vidraças que expunha as folhas amareladas de jornais do lado de dentro. E, nesta tarde já caída, todos observavam de longe, da praça, da porta da padaria, se um foco de luz iria transpor aqueles papeis velhos.

Antônio acorda no hospital,

Não sentia dores,

Ou como dizia seu Joaquim:

Dores já não sentia

Mas o problema era sempre dele.

Quem então veria?

Antônio fala ao médico: Posso pagar tudo, manda alguém ir lá pegar.

Quem então pegaria?

Não sei, pede ao Joaquim, ou as crianças que sorriam, ou o mendigo, esse sim! Me ajudaria.

Chegaram à rua calma em busca de alguém que pudesse indicar onde era a casa do velho. Mas era noite, o silêncio era presente, mas neste dia, como não era de costume, a padaria ainda estava aberta e as crianças não estavam brincando, mas à espreita de alguma notícia e foram elas que apontaram para uma janela onde jornais se destacavam.

Seu Joaquim gritou.

- O mendigo pegou as economias!

Levou ao hospital, de onde Antônio saiu numa cadeira de rodas, e viveria ali até o seu fim.

Com o tempo o mendigo e a criança vieram morar na casa velha e Antônio sempre dizia.

- Ora, isso não era para ser problema de vocês.

- Eu não estou aqui pelo o pão.

- Só um pão, nem eu estaria, disse Antônio

- Um abrigo para meu filho, as chuvas não estava nos deixando dormir.

As rimas de Joaquim com o tempo são esquecidas, ele ainda é dono da padaria, e de vez em quando, conta para alguém que aparece, a história do velho solitário, até mesmo aos jovens do bairro, antes crianças que brincavam na rua. E assim termina a história, com o final simplório, mas feliz.

Antônio vira-se na cama, se vê no momento único de sua vida, mas ninguém via seu sorriso. Ele pediu para que as janelas fossem abertas, para que ouvisse o som da rua, e aquele velho livro se pôs definitivamente ao seu lado na cabeceira, aquele mesmo sem capa e muito mais corroído pelas traças, mas que transparecia uma bela folha de rosto, depois que a luz penetra e com a vista descansada fica mais fácil de ler.

A flor fora do vaso já se acostumara a dividir a água com os ramos dos túmulos vizinhos, Antônio jazia só como antes, talvez como queria. Debaixo de sua flor os problemas cessam, mas antes de tudo provou do gosto de mãos que se erguem no vazio à espera de outras, mesmo que sua boca nunca tenha falado, foi feliz, pode dividir as histórias que sua mente guardava para si, o balbuciar ganhou som, cor e nitidez, e antes de cruzar os caminhos naquela noite fria, ficou feliz por saber que sempre estaria com ele, o mendigo, seu Joaquim e as crianças que sorriam.

Silvestre C. Cantalice Filho

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