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Rosa Pena



O marceneiro entregou a encomenda e ela constatou que realmente entrou fácil pela entrada. Ela havia pedido a outro profissional que aumentasse o tamanho da porta para um metro e meio de largura e dois e meio de comprimento. Extensão mais do que suficiente para a passagem do objeto mais luxuoso que adquiriu em toda sua existência. Queria ter certeza que nada nele seria arranhado e não soltariam aqueles rebocos malditos que sujam o chão. Sempre tudo limpo, bem limpinho.

Sentou-se para tomar a sopa e sentiu vontade de comer uma torrada com o gosto de infância, depois que amadureceu havia perdido a vontade, farelos emporcalham a mesa, por vezes até o piso e ela cresceu aprendendo a ser e ter tudo limpo, bem limpinho. Que vontade besta de comer torrada! Nem quis casar para se poupar disso! Homens sujam qualquer ambiente com a simples presença e para piorar ainda mais querem filhos, Deus que nos livre e guarde dessa poluição com nome de procriação! A vida começa a vida sujando-a desde a mãe no parto com aquele imundo cordão umbilical.

Torradas pra quê?

Sorveu rápido seu caldo e lavou imediatamente o prato e a colher. Enxugou e guardou. Pia limpa, bem limpinha. Olhou a geladeira e constatou que só havia uma garrafa de água. Esvaziou-a e secou bem a geladeira. Nada de pequenas poças, vai que alguém pisa e ficam aquelas marcas sujas do mundo exterior no seu chão. Não aqui no seu canto simples, porém seu. Aqui ela jamais deu o direito de algum senão no olhar de terceiros.
Sua morada sempre foi o espelho de sua conduta correta. Passou uma vassoura na casa toda, um paninho úmido nos móveis, fechou bem todas as janelas para não entrar nem pó de luz. Escura, negra, porém limpinha.

Claridade pra quê?

Escreveu o bilhete avisando a hora que deveriam apanhar a encomenda e fazer a retirada pela porta nova, pois esta tinha o espaço ideal. Que tirassem os sapatos na entrada, nada de pegadas ferindo seu assoalho. Deixou a mensagem e a chave com o porteiro encardido que assobiava cuspindo saliva. Nunca entendeu porque pobre não percebe que pode ser pobre, porém limpinho!

Assobiar pra quê?

Tomou um banho e vestiu seu vestido branco, ainda com cheiro de água sanitária, colocou uma fralda grande na calcinha. Vai que viesse algo no durante e manchasse sua atitude? As roupas e as toalhas, usadas anteriormente, foram colocadas num saco plástico e levadas imediatamente para a lixeira.

Não desarrumou a cama, não havia necessidade de bagunça, pegou seu travesseiro com uma fronha sem apliques, relevos arranham as boas normas de sanidade. Com correta insanidade apertou-o forte de encontro ao rosto. Não arroxeou, pelo contrário empalideceu, foi enterrada quase branca na terra negra e pobre, porém limpinha, exatamente igual a ela, uma foto em negativo nunca revelada. Teve uma morte limpa, mais que limpa... Limpíssima! Alvejante e insípida como o cloro nas piscinas que sequer colore a água.

Colorir pra quê?

Rosa Pena
Enviado por Rosa Pena em 17/01/2005
Reeditado em 29/06/2011
Código do texto: T1776
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