O Espírito da Casa

Por fora era um palacete do século XIX sem nada de especial, apertado entre edifícios dos anos vinte. Quando me convidaram para ir à casa deles não pensei nunca que fosse ali, à Circunvalação, tão perto do local em que Maria e Daniel trabalhavam. Que a porta era de respeito em seu peso e suas almofadas, seus gonzos e bandeiras, suas ferragens de bronze, não havia dúvida; mas depois, depois foi o grande espanto! Como era vasto o compartimento de entrada, espécie de salão com dois lances de escada que nasciam a dois passos da entrada e acabavam no tecto, justamente para, de igual modo, renascer até ao segundo andar e deste até ao terceiro, numa repetição que delimitava idênticas vastidões. A nova casa deles não tinha - que se vissem - quartos, cozinha ou casa-de-banho. Ao subirmos arfávamos fazendo soar os sapatos no ferro dos degraus e, sem outras diferenças, aportámos ao último andar onde, abrupta e enorme, acabava a casa, a mansão ou o que se queira chamar a quatro salões ligados por escadas à Eiffel, iluminadas por janelões bem acima do acesso de qualquer mortal.

Compreendendo esta perplexidade os meus amigos confessaram: - Vês, é por isso que, mesmo barata, não queremos ficar aqui. A casa resiste a qualquer tentativa de alteração e nós não podemos habitar este deserto, mesmo sabendo que morou aqui o proprietário, cerca de quarenta anos... - Pois sim, mas onde é que, no tempo desse tal professor de música, se cozinhava? E o resto? Onde param o WC, a despensa, o escritório? Não posso acreditar que toda esta vastidão pudesse funcionar como um gigantesco armário de 3 prateleiras. Que sabem vocês disto? perguntei no cúmulo do espanto. - Nada, absolutamente nada. De resto está decidido, devolveremos a chave logo que se esgotem os dois meses que pagámos e só te mostramos o “monstro” porque o poderias usar como “atelier” se te interessar... Ainda estive tentado a recusar mas depois, pensando no tamanho das telas que gostaria de pintar e nunca pude, aceitei, entre o encantado e receoso. No dia seguinte haveria de perceber melhor o porquê do fascínio e do medo.

É que o acesso aos andares superiores estava longe de ser fácil a quem quisesse levar algo de mais volumoso consigo, tal era o formato das escadas, a altura dos seus suportes, o tamanho dos patamares! A verdade é que os mistérios da casa se não ficavam por aí já que, encostando-me a uma das paredes, a mesma deslizou sem esforço e... revelou a cozinha, em tudo convencional para os moldes da época, divisão a que não faltava um fogão de lenha com a respectiva caldeira, o louceiro pintado, a mesa de tampo grosso com gavetas, os dois bancos corridos e um trem de panelas semelhantes às que ainda se fabricam em Albergaria-a-Velha.

Tive a certeza de que ninguém, a não ser o misógino professor, entrara ali, tão arrumado estava tudo em seu lugar de origem. A fina poeira sobre as coisas e as revelações que a luz da janela, entretanto aberta, davam ao ambiente um clima pesado e insólito.

Foi com excitação crescente que procurei o resto da casa, agora seguro de que, com botões ou alavancas, paredes rebatíveis ou a deslizar sobre complicadas roldanas, ela se acabaria por mostrar em seu antigo esplendor e funcionalidade. Mas... não foi fácil. Tive de observar os cantos das salas e as juntas, os tectos e as janelas, os lambris em madeira e, num caso, até as sancas. Só depois, desconfiando de pequenas saliências ou pressionando inocentes parafusos, a casa mostrou as zonas íntimas.

A ligar ao primeiro espaço, à direita e ao fundo, um lavabo em mármore com lavatório, jarro e respectivo balde. O espelho, amplo, estava cravado na parede e as toalhas, objectos de “toilette”, saboneteira de porcelana e boiões de creme davam colorido ao conjunto. Um cheiro a ranço e a alfazema denunciava o abandono a que o tempo e a Santa Misericórdia, proprietária por doação deste imóvel, haviam sujeitado tudo aquilo. A cadeira do penico era forte e parecia confortável. Restos de tubos de zinco ligavam o receptáculo dos despejos ao exterior, provavelmente para a fossa séptica que, tudo indicava, existia no quintal.

No andar seguinte, tal como eu previra, estava a biblioteca com a sua estante de mogno e a secretária em carvalho, tudo em “design” sóbrio apenas perturbado pelos santos de talha, enfileirados numa prateleira como em parada militar. A tela mostrava um homem de bigodes brancos e luzidia careca, cheio de condecorações e a cadeira de espaldar, em couro, parecia deslocada do conjunto. Os livros, organizados por temas, faziam companhia a inúmeros “dossiers” onde havia registos, textos em letra desenhada e outras coisas menos certas ali tais como flores secas, fotos de família e até um caracol de cabelos loiros em medalhão de prata. Uma encadernação em carneira guardava um diário que, provavelmente, faria luz sobre tanto mistério mas, na avidez de outras descobertas, não o li. Aliás não sei como me dominaram a curiosidade e a pressa porque, de repente, dei comigo a responder às perguntas de um homem baixo que, salvo erro, era o mesmo do retrato. Foi ele que me sugeriu que voltasse a fechar a porta do escritório apontando-me a saliência metálica respectiva e foi seguindo-lhe os conselhos que não voltei a escorregar nos degraus de acesso ao andar superior onde eu suspeitava vir a encontrar uma fabulosa câmara de dormir.

Na subida amparei-me ao braço do senhor dos bigodes e até lhe fiz perguntas no sentido de chegar mais depressa ao que eu achava ser a peça fundamental, partindo do princípio de que aquela personagem tinha tudo a ver com a casa embora não me ocorresse a necessidade de a justificar ali, naquele exacto momento. Não sei como é que ele procedeu mas o quarto revela-se-nos logo a seguir à chegada ao patamar, provavelmente porque teria sido tocado o seu “abre-te Sézamo”. Afinal era uma peça sóbria, espécie de cela monacal com um leito de ferro, uma mesa-de-cabeceira de madeira escura e um crucifixo exângue, perlado de rubis. À falta de outros móveis eu sentei-me na cama e o meu companheiro na arca existente à beira da janela. Estávamos exaustos da subida e não nos apetecia falar. O curioso é que, ainda assim, continuávamos a comunicar. Fiquei a saber que era ele o professor de música e que aquilo tudo que me parecia insólito era só a sua defesa. Era da oposição ao Governo de Sua Majestade e estava sob rigoroso controlo de bufos e esbirros, de oportunistas e verdadeiros saqueadores. Era isso que justificava a altura das janelas e o ermo dos salões.

Tudo se passava, oficialmente, como se ele fosse pouco mais que um miserável que, de seu, tinha aquele espaço vazio, só com o sofá onde dormia, a mesa de pinho para as aulas e os instrumentos musicais que o Rei lhe emprestara depois de lhos penhorar. Levara meses a arquitectar um modo de se esconder e aos seus bens e valeram-lhe os muitos conhecimentos que tinha de química, física e matemática para dar viabilidade àquela casa. Emprestava-ma, é evidente, pelo tempo que eu quisesse e, descendo de novo, foi-me mostrando como tudo se tornava agradável, suave, organizado, útil, revelando-me os segredos das áreas respectivas.

Regressados, por fim, à biblioteca, pegou no diário e só então disse, com palavras e sons: - Só há uma condição, caro artista, é que este segredo seja só nosso. Você nunca poderá desvendar a ninguém o que levei tanto tempo a esconder. Quando se fartar de fazer telas grandes, pinte das outras, aliás as únicas que, armadas, você poderá levar daqui. E, ao sair de vez, diga que isto não tem condições e que, mesmo barata, a casa não presta. Exactamente como a acharam a Maria e o Daniel a quem não ajudei a descobrir o resto. Pronto, agora tenho de ir porque escurece. - E dizendo isto deu um salto e... integrou-se na tela da biblioteca que, sem ele, ficava sem graça. Foi por isso que saí e fechei - como ele muito me recomendou - a porta.

Sentei-me, depois nos degraus da escada e... ooooooohh, bocejei, acordando, no meu quarto, sobre a manta de lã.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 16/08/2009
Código do texto: T1756607
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