Eduardo da Silva Monteiro

“Every child is an artist.

The problem is how to remain an artist once he grows up.”

Pablo Picasso

Corre, corre por esse mundo fora, como se o teu ser pertencesse a uma roda de autocarro que se desloca a alta velocidade por essa estrada alcatroada, sem fim à vista...cuidado...não pares nos semáforos de cores luzídias, fartas bandeiras que nos atropelam os sentidos e nos fazem ser simples bonecos de pilhas...vai...desbrava caminho por entre as transversais e curvas perigosas, não queiras saber das bengalas e dos carrinhos de bébé parados no meio do caminho e, nem do polícia que te acena com o braço no ar, fazendo sinais para que pares e sossegues essa tua cabeça, cheia de pesadelos e de cortes de cabelo, que nem sabes que existiam...deixa as montras e as pastelarias, as senhoras de lenço ao pescoço e os mimos na baixa pombalina....corre mais depressa ainda, não te preocupes com o cachecol que se enrolou num poste de electricidade, não olhes para trás, nem te vires de encontro às fardas dos tropas, cujos marinheiros nem reconhecem o idioma que falas. Apressa-te para não chegares atrasado ao barco, cujo som do apito é o último e já o vês a afastar-se na lentidão de um dia que nem chegou a nascer, pois o sol tem o lençol do nevoeiro a tapar-lhe a esperança de brilhar para ti e por ti, sem querer saber de ti, porque não te conhece, nem te viu.

Cuidado! Já te falei!

Esquece por instantes a nota de culpa que o teu patrão te colocou em cima da secretária, da última vez que a viste, pois nunca mais a irás ver, nem tocar, nem sentir o cheiro do tampo metálico, dos papéis que te enchem o horizonte de pó e de alergias a uma luz artificial e trémula de candeeiro moderno.

O tempo urge, por isso nem penses em sacar do maço, um cigarro e de o acenderes com o isqueiro que te esqueceste em cima da mesinha de vidro, encostada à parede da tua sala minúscula, pertencente a um apartamento de quarto andar, cujo tecto é tão baixo que tens de andar com a cabeça baixa, porque tu és alto, de corpo atlético, apesar de ninguém querer saber do teu porte e da tua silhueta de homem que já ultrapassou há muito os cinquenta anos, mas que se tem de comportar como um jovem, na sua metade de cara já envelhecida pelo tempo...por este mesmo tempo que não te dá a conhecer as horas e os minutos, nem se compadece com o facto de carregares uma mala pesada...negra, gorda pelo conteúdo que transporta esse teu braço que quase estremece pelo formigueiro causado pelo cansaço, na sua forma aparente de sorriso...

Espera...espera. Não desesperes. Eu ajudo-te...

_ Deixem-no passar. Deixem passar o homem que vai para o trabalho!

Eu bem que lhes berro, mas eles e elas são como tu....vão pelo mesmo caminho, atravessam na mesma passadeira, grunhem como animais furibundos, pois sabem que se dirigem para a bastilha dos seus sonhos tornados irreais e que a guilhotina os aguarda, para lhes cortar todos os dias o pensamento da liberdade em serem felizes.

Mas tu não....tu és diferente, pensas nisso durante o dia todo, nem sequer te dás conta das caretas que as tuas faces fazem, quando exprimem para o exterior a tua verdadeira essência...

Se tivesses asas...ah!, se tivesses as asas da vitória, fugirias deste mundo para te refugiares em ti mesmo, como quando te deitas por fim, na cama de casal e a tua mulher te dá um beijo com os seus lábios quentes e formosos...é o bilhete de comboio para o tal destino...

Foge...salta por cima do canito encolhido a um canto, cheio de fome e frio, abandonado à sorte...não penses! Deixa-te disso...

_ Tenha atenção que o esperam às nove horas na recepção. O cliente não pode esperar...

Peço-te...

_ Depois de o levar ao aeroporto, terá de ir ao laboratório entregar esta caixa. Preste cuidados com o professor, olhe que ele é bom gastador...

Não faças isso....

_ Logo a seguir, leve o carro à oficina, mas não se demore, pois o senhor engenheiro tem pressa em o ter às nove e meia...

Escuta-me...por favor...

_ Terá que chegar aqui ao escritório muito antes disso para que ainda embale este material e o leve com todo o cuidado até à estação de Santa Apolónia, pois lá o esperam os técnicos da comissão de coordenação regional...

(...)

_ Já agora...atenda o telefone, sim? Tenho a impressão que você desde há uns tempos para cá está a ficar muito lento nas suas tarefas...não ouve o telefone a tocar?! Vá, não fique a olhar especado para mim...

_ Mas eu estava a receber as suas instruções com muita atenção. Estava a ouvi-la.

_ Não me responda, ouviu?! Está por um fio...por um fio...

_ Ou bem atendo o telefone, ou bem que a ouço...

_ Basta...tem o dom de me fazer dores de cabeça. O senhor doutor ficará a par desta conversa, esteja descansado!

_ Mas não tem razão de ser....

_ Basta! Estou farta! Vá trabalhar...

Eu bem que tentei desviar-te, meu bom amigo...

_ E guarde a sua hora de almoço para ir buscar os dossiers ao armazém. Amanhã tenho cá o pessoal da contabilidade e tenho tudo por fazer...tudo por fazer devido à sua falta de....de...falta de consciência pelo trabalho! Ande....corra...

E agora?

Que fazes tu? O que se passa contigo?

Para que estás a despir esse casaco e desapertas o cinto?

Mas o que tens?

_ O que tenho eu? Ódio. Muito ódio por vestir todos os dias estas calças que têm de conduzir com a cor da camisa, e, esta gravata de seda que me aperta o pescoço e me faz sufocar por entre os nós dos atacadores dos sapatos, sempre engraxados, sempre pretos...

Quem é o Eduardo?

Perguntas-me por ti, mas não te sei dizer.

Só sei que caminhas agora, totalmente despreocupado contigo mesmo. O teu cabelo já não tem a brilhantina da manhã enevoada e fria. Tens os cabelos ao vento, soltos, tal como a camisa com os botões desapertados e a gravata completamente torta, esticada por cima do teu ombro.

Andas descalço, com os pés aquecidos pelas pedras da calçada. Inclinas-te para a frente e colocas as mãos por cima dos joelhos dobrados e reparas...para onde olhas tu?

_ Para estes desenhos...as caravelas, os corvos pintados de preto. Ainda te lembras da última vez que os viste?

Piso-os tal como tu, ouvindo o barulho dos saltos. Não. Não me lembro de os ter visto, aquando da última vez que passei por esta rua, ou será avenida. Já pensaste que podes estar perdido? Ai, a tristeza! Estás perdido, Eduardo, e agora? Como irás para o trabalho? Quando irás para casa?

Estás mesmo em frente do teatro D. Maria II. És mais um que se torna invisível, por isso, juntas-te aos demais, encostados uns aos outros, com as mãos nos bolsos, assobiando esperanças que algum capataz os venha buscar para um só dia de jorna...vês os outros? Aqueles por quem ainda ontem passaste e desvias-te o olhar com toda a pena do mundo...

Vem...Dá-me a tua mão...

_ Não...Deixa-me em paz. Agora é tarde para regressar. Vai tu e deixa-me estar por aqui.

Meu bom Eduardo. Este não é o teu mundo.

_ Deixa-me em paz, porra! Não preciso de ti para nada.

E agora gritas comigo. Ainda pensam que falas sozinho, quando se aproximam de ti duas, três, seis ou sete crianças, curiosas, e, fazem uma roda à tua volta, para te verem...

_ Não me conhecem...não lhes faço mal! Voltem para as vossas mães e digam-lhes...digam-lhes...meu Deus...vão-se embora. Desapareçam!

Não os enxotes dessa maneira, Eduardo. Não são pombos...são crianças!

Onde vais? Espera...Eduardo...espera.

_ Tenho fome...tenho fome. Não sentes o meu estômago? Tenho muita fome...Onde está o pão? Onde raio meti o pão com manteiga e queijo? Ajuda-me...

Eduardo não desesperes...

_ Sinto falta de ar...ai...ai...acudam-me que estou a morrer...acudam-me!

Deixe estar, minha senhora. Não se preocupe. Não é nada de alarmante. Eduardo. Onde vais nessa correria? Espera por mim...Desculpe sim? Aceite por favor as nossas desculpas...Eduardo!

Agora desces em direcção à Rua Augusta...tem cuidado com os carros, eles não são peões, o volante não pede desculpa por te abalroar...não quero ver, nem ouvir o som rápido de uma paragem brusca. Tapo num repente os olhos com as mãos fechadas em concha...perdi-te!

Os sons dos gritos são por demais sonoros, gerando um remoínho de poeira pelo ar, e como se as pessoas aqui presentes resolvessem bradar todas numa só voz, cobrindo os ouvidos com as mãos, soltando essa agonia por entre as órbitas dilatadas, nessas cavernas oculares, vazias, escuras, negras.

Eduardo!

Esta minha voz está rouca...não me consigo escutar...mas lá estás tu, com as mãos coladas no tampo do veículo, olhando fixamente para o céu, em que as nuvens se afastam, dando espaço para o cinzento escuro da chuva que te molha a pele seca.

E continuas a correr...

Corre, Eduardo, corre por esse mundo até chegares ao infinito das tuas acções mais severas, onde no qual se reflecte pela tua sombra a sirene azul de um carro autoritário, chamado à pressa pela sociedade inquieta...

_ Não querem mais um doido à solta...é isso não é? Para vocês eu sou mais um maluco que vai de encontro aos postes e às colunas. Sou mais um destes que se deitam no frio e acordam gelados, por entre cascas de cartão velho. Pois bem...aqui me têm!

E abres os braços, como se fosses um Cristo a ser sugado por entre o vórtice do buraco negro do vento, e é aqui no Terreiro do Paço, que dás voltas sobre ti mesmo, nesses braços abertos ao universo, para o universo...para mim, que te vejo a contar as estrelas inexistentes da planície.

Cais de bruços no chão pardo, para exclamares:

_ Onde está o Cais das Colunas? Tenho tantas saudades...O Cais das Colunas...

Levantas-te, para deixares atrás de ti a tua silhueta no chão, marcada a giz.

É quando reparas nesse barulho ensurdecedor da sirene cada vez mais próxima.

_ Quem me procura? Onde estou? Quem sou eu?

Quem és tu, Eduardo?!

Deixa-me que te responda que és um simples homem com uma pressa danada em chegar à bilheteira, reparar que não trouxe o passe electrónico e dar uma moeda de dois Euros ao funcionário da Transtejo, para que te dê em troca um bilhete.

Eu sei que estou aqui sentado à tua espera, vestido tal como tu estavas à instantes atrás, com a mala encostada ao banco de plástico, a ler um jornal.

_ O senhor também está a ouvir este barulho? – Perguntas-me, preocupado.

_ Qual barulho?

_ Este...o da luz azul...

_ Ouço tantos barulhos por aqui, que por vezes me é difícil distinguir os sons. Quer especificar?

E impaciente, dizes-me:

_ O barulho da sirene...tenho a sensação de estar a ser perseguido.

_ Ora...não pense nisso, meu caro senhor. Sente-se um pouco. Parece exausto.

Aproximo-me para te dar um aperto de mão.

_ Muito prazer...

_ O prazer é todo meu. – Digo-te a sorrir. – Hoje parece-me que os barcos se atrasaram.

_ Porquê?

_ Sai de casa muito atrasado. Vim numa correria para apanhar o barco para o outro lado e ir trabalhar. Até me esqueci do telemóvel e das chaves em casa...para isto! Meia hora atrasado. Será que fizeram greve?

_ Porque é que o senhor está tão calmo a dizer-me essas coisas?

_ Valerá a pena estar aborrecido?

_ Ai este barulho! Tire-me daqui, tire-me daqui...

_ Mas o que tem, meu caro senhor?

Realmente, neste mesmo instante, vejo um automóvel a estacionar em segunda fila e o condutor a ligar os quatro piscas.

Abre a porta o condutor, que sai, olhando em todas as direcções, até que coloca a atenção em mim e me acena. Fecha a porta e em passos rápidos, vem ter comigo.

_ Pai...

_ Que fazes aqui? – Perguntas, admirado.

_ Então, paizinho. Já te esqueceste que hoje é Sexta-Feira Santa?

_ A minha cabeça. Por isso a tua mãe ficou mais tempo a dormir. Agora é que estou a perceber...

_ Só pensas no trabalho. Saiste tão apressado que nem trouxeste o relógio de pulso.

_ Pois foi. – Respondes com a feição mais ingénua do mundo.

_ Mas agora eu estou aqui, e vamos tomar um belo de um pequeno-almoço.

_ Mas espera...como foi que soubeste que eu estava aqui? Praticamente não nos vemos durante o dia!

_ Porque lembrei-me o quanto gostavas de estar sentado na pedra do Cais das Colunas, a olhar para os cacilheiros. Hoje o teu barco não te veio buscar...mas vim eu!

_ Também será por pouco tempo, filho. Já recebi os papéis...

_ Eu sei. A mãe contou-me. Mas não faças essa expressão, então!?

_ Foram muitos anos...não se pára assim de um momento para o outro!

_ Não te preocupes. Irás trabalhar comigo no final do mês de Maio. Queres?

_ Um reformado? Estás a dar trabalho a um velho?

_ Só tens a idade que te acenta muito bem...

_ A pré-reforma...trabalhei muito naquela empresa...e de um momento para o outro...sinto que fecharam os trinta e muitos anos de trabalho numa caixa muito pequenina e apertada, juntamente com tantas outras pessoas...

_ Nós estamos aqui...sempre estivemos e sempre iremos estar aqui, ao teu lado, para te apoiar incodicionalmente...

_ Ao menos deixa-me mastigar pela última vez a carcaça com manteiga e queijo que a tua mãe me preparou...

_ Sem pressas...

_ Sem o telefone a tocar...

Levanto-me para ir com o meu filho a amparar-me, e juntos vamos regressar a uma pastelaria na Praça da Figueira, para lermos em paz o jornal e, conversarmos sobre a vida.

Enquanto tu, que te diriges para a Avenida de Liberdade, levando a mala preta segura na mão, parando em frente ao Cinema São Jorge...sentas-te num banco de jardim de cor verde, apoias a mala nos joelhos, destrancas o fecho metálico, abres e retiras de lá de dentro um embrulho.

O pão é retirado do papel de cozinha, em que se encontrava. Levas o alimento à boca, para o mastigares devagar, com toda a calma do mundo, saboreando o gosto da fatia do queijo açoreano e a manteiga que se derrete no céu da boca, bebendo em intervalos compassados o leite que está dentro de um pacote pequeno.

_ Agora sim...já consigo respirar.

E dás bocadinhos de pão a um cachorro que fora abandonado...

Isabel Máximo Correia
Enviado por Isabel Máximo Correia em 10/08/2009
Reeditado em 10/08/2009
Código do texto: T1746648
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