O Espelho (Vampiro - O Réquiem)

O espelho

Eu olhava fixamente para o espelho, compenetrado.

Espelhos não costumavam mentir. Pelo menos, não enquanto eu ainda estava vivo.

Mas agora, depois de tanto tempo, eu era capaz de analisar melhor. O que eram os espelhos, senão instrumentos da ilusão? Era cômodo pensar que eles podiam refletir tudo, e com exatidão. Era cômodo demais, tanto que ninguém se aborrecia com o fato de que eles mostravam tudo ao contrário. Era aceitável mexer o braço esquerdo, e ver o braço direito do reflexo movendo-se. Absurdo! Mas compreensível.

Ninguém se importava de ser enganado, não... Qual o problema de ser enganado, afinal? Desde que pudessem continuar a alimentar as vaidades em ilusões belas e bem montadas, não haveria problema algum. Calvin pelo menos parecia adorar espelhos, uma vez que o apartamento estava repleto deles. Talvez o ajudassem a se lembrar da sua humanidade perdida... Ou talvez o ajudassem a ver quando a Fera estava ganhando espaço... Eram inúmeras as possibilidades, e não cabia a mim ficar teorizando.

Mas o fato era que os espelhos não mostravam tudo.

O espelho mostrava a minha face, repleta da formosura da sua juventude. Uma face que não mudaria, que estava fadada a ser eterna... “Pela preservação da beleza...” –Eu ri, ao pensar no que Calvin diria.

Sim... Minha face era bela, mas não era a única.

Havia outra face, oculta. Uma face que me observava, que me falava, que ria de mim. Uma face que me acompanhava aonde quer que eu fosse, por debaixo da minha pele, escondida na minha carne. A face estava aqui, eu sabia. Eu podia ouvi-la, eu podia senti-la.

O espelho era inútil. Ele não mostrava tudo.

Pelo menos, não como ele estava... Tão plano, tão correto... Programado para mostrar uma imagem de perfeição... Uma perfeição distorcida, diga-se de passagem... Mas de uma distorção incapaz de mostrar as outras distorções existentes.

Mas eu queria ver a distorção da minha mente... Queria ver aquela face oculta, queria tocá-la, senti-la em meus dedos... Talvez se eu conseguisse tirá-la daqui, de dentro da minha carne, ela pudesse me explicar o que fazia aqui em primeiro lugar, não?

Talvez.

Talvez eu pudesse encontrar um jeito de fazê-la sair, mostrar-se... Eu queria encará-la, queria perguntar tantas coisas...

Talvez ela pudesse aliviar toda essa angústia que constringia meu coração e essa pressão que ameaçava partir meu crânio.

Talvez.

O baque foi surdo a princípio, mas resultou em uma esplendorosa sinfonia de sons agudos. Os cacos caiam no chão, tilintando belamente para então partirem-se em mais pedacinhos. Centenas deles, brilhando, refletindo com majestade a luz da elegante luminária pendurada no teto. Luz esta que era refratada através das densas gotas de sangue. O sangue que escorria livremente por meu rosto, através das cortes na minha delicada pele, através da minha testa estourada.

Pensei por um instante se Calvin ficaria mais zangado por eu ter quebrado o espelho ou o porcelanato que revestia a parede.

Desisti de pensar nisso ao notar, maravilhado, a cena que se formara abaixo de mim. Um espelho quebrado reflete centenas de imagens diferentes de um mesmo objeto, afinal. Era magnífico, era uma obra de arte. Era quase como um milagre. Um milagre da percepção.

Eu me vi.

Vi minha face.

Vi milhares de outras faces.

Algumas riam, outras choravam. Umas estavam tranquilas, enquanto outras não demonstravam nada além do total desespero. Em comum, todas estavam manchadas de vermelho. E esse vermelho se tornava ainda mais intenso à medida que mais gotas encarnadas despendiam-se do meu queixo.

Gotas que se suicidavam, mesmo sem saber se estavam vivas ou mortas. Derrubavam-se, sem medo, em direção a um abismo de cacos cintilantes repletos de faces.

Faces.

Faces que apenas eu era capaz de ver, tinha certeza.

Faces que não escutavam as batidas na porta até que a mesma foi violentamente derrubada.

-Matheus! O que aconteceu aqui? –Calvin adentrou o banheiro, certamente louco para saber o motivo do cheiro de sangue que se espalhava maravilhosamente pelo apartamento. Olhou para a cena um tanto horrorizado, e eu, em um certo momento de sadismo, gostei de ver seu horror completar-se quando ele se deparou com meu rosto desfigurado. –Por que tu fizeste isso? –Indagou, pegando a toalha ao lado da pia e molhando-a um pouco, a fim de limpar os meus ferimentos.

“Eu queria ver a face”? Não, não era uma boa resposta.

“Eu queria aliviar minha dor de cabeça”? Menos.

-Não é bonito? –Perguntei simplesmente, voltando minha atenção aos cacos no chão. Vendo que Calvin me repreendia com seu silêncio, prossegui. –Desculpa... Eu perdi o controle... De novo... Eu vou limpar tudo, e pagar pelo estrago... –Disse baixo, agachando-me para começar a limpar os cacos, as faces, o sangue, o que fosse.

-Não, deixe que algum serviçal faça isso... Mas francamente, Matheus! Por que tu sempre fazes isso? –Perguntou-me um tanto exasperado. Pude perfeitamente notar sua chateação.

Coloquei-me então a observar atentamente Calvin. Aquele Deva, tão belo e repleto de formosura. Mas tão carregado das suas próprias verdades que não conseguira evitar a morte de sua alma. Uma pena, ele estava irremediavelmente seco.

Ou não.

Podia haver uma cura. Podia haver elucidação, e esta elucidação poderia desmontar todas as verdades pré-concebidas, derrubar todos os medos e todas as amarras sociais. Poderia trazer sensações genuínas a uma criatura que buscava na carne os resquícios do prazer que fora perdido no processo da morte.

Talvez pudesse...

Eu, que até pouco tempo não passava de um falso Ventrue, havia agora sido convertido em salvador. Toquei ternamente a face daquele Deva, mensurando com as pontas dos meus dedos toda aquela perfeição estética, sentindo a textura aveludada da pele fria e morta. Vi os olhos de Calvin se fecharem, apreciando o carinho genuíno que há anos não era recebido. A solidão era a sua maior dor, eu sabia.

A solidão doía tanto que Calvin sequer ousou reclamar quando meus macios lábios partidos e ensanguentados uniram-se aos seus. Rubras lágrimas deixavam seus olhos, enquanto, sem relutar, recebia em sua boca o meu sangue. Ele sabia o que aquilo representava, mas ainda assim, aceitou aquele doce ósculo e aquela doce prisão, enquanto aparentemente sua mente se perdia em algo aconchegante e quente. De um calor que ele já nem lembrava mais existir, eu sabia.

Enquanto isso, eu me limitava a observar com certa compaixão todas as reações daquela pobre criatura à medida que trocávamos aquele beijo profano. Envolvi-o com força entre meus braços assim que senti seu corpo estremecer de leve. Beijei-o com mais intensidade. Estava partilhando com ele mais do que amor e carinho. Partilhava esperança. Partilhava com ele a minha maior benção e maior maldição. Disso, até há pouco tempo atrás, eu não sabia.

O sangue de Malkov.

Após se quebrar um espelho, era mais fácil compreender certas coisas.

Ryoko
Enviado por Ryoko em 02/08/2009
Código do texto: T1732162
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