M. Interferida

Uma longa discussão na sala ao lado. O murmurinho já tinha se tornado algo como um escândalo em praça pública tamanha era a audição dos gritos e gestos que eram disparados na sala ao lado. Tias, tios, primos, avós-tios , sobrinhos, irmãos, todos, todos discutiam na sala ao lado.

- Qual o rumo M. deve seguir? Asilo ou a casa de alguns de nós?

- Casa de alguns de nós? Quem disse essa insanidade no mínimo precisa de maior atenção que a coitada da M.! Essa pessoa, a M., já não cheira tão bem, não tem mais tantos encantos, aquelas rabanadas no natal já não são sequinhas e bem temperadas no açúcar e canela...

- Você sempre foi o mais interesseiro de todos da família, R.! Cara, toma um rumo na tua vida, essa coisa de tirar proveito das situações e só ver o lado vantajoso já não te empresta uma roupa que lhe deixe digno. Será sempre essa coisinha baixa que se esconde nesse tamanhão que tu tens!

- Calma, para quê essa troca gratuita de ofensas? A questão não está sendo solucionada e nada poderá ser decidido assim, vamos com calma.

E as coisas iam tomando o rumo na sala ao lado assim, sem direção. M. muito ataráxica, para não pensar em perplexa pois desse estágio passou há muito, não desejava mais ouvir, nem ver, nem falar, desejava a fundo perder seus sentidos, como num estalo trágico, um AVC, um infarto... não para se sair de vítima, não. Era egoísmo mesmo, um egoísmo heróico: queria se ver livre daquele seio, daquela raiz apodrecida, que floresceu e deu frutos tão amargos e bichados em sua família. Avisceralidade de seu desejo foi tanta que de fato perdeu seus sentidos, como nunca.

E, já sem sentidos, apenas com o senso de direção bastante aguçado e alguma pouquíssima visão que sobrevivia grata ao instinto de vingança, ajeitou-se no seu andador um levantar imperativo, mesmo com a coluna um tanto torta e curvada para a frente. Arrumou sua camisola suja de molho de tomate do espaguetti mal feito pela madrinha de seu neto, que repartiu metade da refeição com ela. Arrumou os cabelos já nem tão brancos, já nem tão amarelos, já nem tão compridos de tão desgrenhados por falta de pente... de um solavanco, jogou suas madeixas para trás com uma das mãos e seguiu, no ímpeto, até a sala ao lado, no qual ao avistá-la, o silêncio foi geral.

Chegou a centro da sala, com muita dificuldade, com uma expressão deveras irreconhecível, comunicando aos presentes:

-Suja? Sim. Fedida? Sim. Sem encantos, sem culinária, sem boas roupas? Sim. Mas ainda sou a mãe do Governador dessa cidade. E ainda pago o aluguel de cada um aqui.

Tirando um carrapato que incomodava debaixo do seu braço, naturalmente adquirido graças ao seu companheiro vira-latas que sempre dorme em seu quarto às noites, mas que não toma um bom banho há semanas, termina:

- Estão vendo esse carrapato? Pois bem: até meu maior companheiro me deixa um sangue-suga que me chupa. De quem falo, quero todo o bem do mundo que não desejo a nenhum de vocês! Mas até ele, me deixou um ser que me suga. Suja sim, mas ainda mando! Ainda me sugam!