PRESENTE DE CLARICE
Era meia-noite quando lhe arranquei os olhos e perguntei se tinha fome.
Servi ao paladar a textura estranha do não experimentado. Que degustasse como quem sussurra ao surdo, cego e desprovido de língua, preso no mais completo branco vazio. O círculo movente e encapsulado, delimitando os sobressaltos da dor; o globo.
Antes do jantar, quando retirei cuidadosamente para que mantivesse a estética, gritava de uma dor ensaiada, dor assistida em novela. A extração é imperfeita quando ocorrem imprevistos.
E a música incomoda o raciocínio.
— I love you...
A escolha da trilha, antecedente a ação, dilui o método posterior. Os gritos persistem, não é mais propício, aliás, destoa do silêncio meticuloso e necessário para que eu fizesse.
— Quer um pedaço?— perguntei.
O corpo propenso à banalidades como o ato de manter-se em pé, sustenta massa repositada a cada passo das horas.
Ao sentir a aprovação, o gosto satisfeito, sorriu sincera, apesar da sinceridade competir com a minha.
O vazio me encheu e fiz dele o vinho nas taças.
— Beba! Minhas veias estão vazias.
Apalpou míope a escuridão do líquido denso, servida para refinada apreciação.
Então rezei — hábito antigo —, ofertei e agradeci as dádivas do alimento. Tomei compreensão do esvair/repor da terra. O nascimento recompondo a decomposição: o ovo.
Fritei.
Se a combinação era bizarra eu não sabia. As penas descartadas no lixo junto com as partes menos interessantes e no meu ato disforme, cortando tudo o que fosse com meus óculos perdidos, ao som de música, servi o que o livro de receitas dizia.
— O gosto tá bom!— ela me disse.—Mas podia ter comprado o bicho morto; pra que tanto trabalho!
— Ganhei da Clarice.
Senti o gosto e vomitei.