DELÍRIO COLETIVO

Certo dia, o mundo amanheceu diferente, porém, igual, como ele sempre foi. Ainda estávamos em meados da década de 1950, quando todos os seres humanos, inexplicavelmente, dormiram por uma semana e tiveram o mesmo sonho: vivíamos numa era, na qual muitos dos nossos problemas e dificuldades se mostravam então sanados. Aparelhos eletrônicos capazes de fazerem tudo que se pudesse imaginar tomavam conta de grande parte daquele delírio coletivo.

No sonho, cada pessoa possuía o seu próprio aparelho telefônico. Este era, além de sem fio, bem menor do que os que tínhamos em casa. Os automóveis, com designers que se assemelhavam aos dos discos voadores que víamos nos filmes, nos indicavam os caminhos a seguir, numa espécie de mapa, instalado em seu painel. Os escritórios possuíam não mais aquele monte de máquinas de escrever e seus respectivos (barulhentos) datilógrafos, mas meia dúzia, ou menos, daquilo que chamávamos ali de computadores.

Aqueles computadores não serviam apenas para datilografar documentos, mas também para uma série de coisas. Lembro de, no meu sonho, chegar a ver desenhistas, músicos e até engenheiros tendo o computador como ferramenta imprescindível de trabalho. O jornal impresso tinha suas vendas em queda, já que no computador a gente também tinha acesso ao mesmo jornal.

Lembro também que me casara umas cinco vezes. Todas as cinco esposas que tive eu conheci através do computador. Os casamentos, na minha lembrança, não duravam mais que um ano, cada um. É que a coisa começava muito “quente”, mas, depois que nos encontrávamos pessoalmente, a coisa tendia a esfriar. Cheguei a pensar num casamento vivido completamente pelo computador. Seria lindo se não precisássemos nos ver em carne e osso.

Quando o planeta enfim acordou, um desânimo monstruoso se instalou. Mas permita-me contar como foi o “dia seguinte” a este sonho.

Na medida em que, do extremo leste da Terra para cá, as pessoas abriam seus olhos, naquela manhã de segunda-feira, o desespero do “não possuir” atingia a cada uma delas. Os jovens, achando ainda fazerem parte daquele sonho, corriam para a sala à procura do computador. Não o encontrando, procuravam seus aparelhos telefônicos portáteis a fim de informar à polícia sobre possível furto. Demoraram a entender que tudo fora um sonho. Um fotógrafo, ao ver todo aquele trabalho acumulado em seu ateliê, loucamente inconformado, cometeu o suicídio. Provavelmente, seus últimos flashes de pensamento foram sobre as maravilhas da máquina digital e da edição fotográfica feita no computador. As crianças choravam diante de seus brinquedos agora tão sem graça e sem a magia dos jogos eletrônicos sonhados instantes atrás. Os donos de indústrias lamentavam profundamente sobre a folha de pagamento; notavam com ódio a quantidade enorme de funcionários que ainda eram obrigados a empregar. Em seus sonhos, computadores gigantes faziam quase todo o trabalho industrial. Algumas donas de casa só caíram na real quando abriram suas geladeiras e não encontraram os produtos congelados para microondas.

No primeiro dia após o longo sonho, as ruas eram um misto de frustração e lamento. As pessoas passaram a não acreditar mais em suas próprias capacidades. Elas se sentiam impotentes e ao mesmo tempo desanimadas com a percepção de que tudo estava como sempre foi. As ajudas tecnocientíficas daquele sonho deixavam os corações não apenas saudosos, mas – por que não? – mortos.

- Você sonhou também? – perguntava-me um amigo.

- Sim! Dormi por sete dias! E você? – eu dizia.

- Eu também!

- Você tinha computador?

- Sim! E você?

- Tinha! E meu telefone? Eu carregava numa mochila! Ai, eu quero dormir novamente! Quero aquele sonho de volta!

E quem não queria voltar àquele sonho? Vários programas de rádio não foram ao ar naquele dia, pois seus locutores não apareceram na estação; caíram em depressão. Todo o mundo sofreu um desfalque imenso em termos de “funcionamento”.

Lembro de minha namorada:

- Você sonhou também? – ela me perguntava.

- Sim, sonhei.

- Preciso te dizer uma coisa.

- Diga.

- No sonho, namorei pelo computador.

- Eu casei cinco vezes, não ligue.

- Seu computador tinha câmera? Assim, bem minúscula, em cima da tela, tinha?

- Não. Por quê?

- O meu tinha. E... Não sei como contar, mas... Eu me mostrava nua para um monte de homens.

- Está tudo bem, foi só um sonho...

- NÃO! NÃO ESTÁ TUDO BEM, HOMEM DE DEUS! EU QUERO FAZER DE NOVO! QUERO SONHAR COM AQUILO TUDO NOVAMENTE!

Foi assim. As pessoas enlouqueceram. Alguns artistas plásticos se uniram para criar um movimento artístico no qual o foco era recriar aquele sonho em suas obras. Chegaram a pintar quadros que causaram certo furor. Todos queriam ter aqueles pequenos fragmentos do sonho em sua sala, por exemplo.

Eu comprei e guardei um desses quadros. O nome dele é “O Encontro”. Nele, um rapaz toca a mão de sua “namorada” pela tela de seu computador. O quadro é de um realismo impressionante... Hoje, décadas depois, me sinto como no encontro vivido naquele quadro. Sendo que a mulher ali exposta pode ser perfeitamente trocada pela – tão idêntica àquele sonho – realidade de hoje.

Naquela época, muitos morreram pela falta de toda aquela modernidade vivida naquele delírio. Hoje, quando o delírio se mostra real, sou eu quem me sinto morto.