Passado de amor e sonho

Não era tarefa das mais fáceis, conciliar a manutenção de todas as partes daquele castelo, ditar ordens aos empregados, memorizar números de quartos de novos hóspedes e suas manias. A noite chegava juntamente com a exaustão e peso no caminhar. Subia poucos degraus rumo a seu aposento que ficava imponente junto a sacada do salão principal. Ninguém entendia a razão de ter herdado o direito de ocupar este quarto. O que se sabia era que havia documentos bem antigos que faziam esta exigência e assim foi sendo cumprido desde que o castelo passara de proprietário em proprietário. Era o mais vistoso,amplo, bem guarnecido, de vista fantástica para o mar e de onde se podia visualizar facilmente o farol e suas luzes durante toda a noite. O que ela não via e que era certo acontecer toda madrugada, era uma luz completamente diferente nascer no farol mas migrar lentamente até a varanda de seu quarto.

Tirou devagar o vestido comprido, de saias sobrepostas, rendas e de cor cereja que a obrigavam a usar. O decote generoso tornava seu colo atraente e forçava uma respiração pausada. Cabelo impecavelmente preso disfarçando seu real comprimento. Fazia parte das normas do castelo os que ali trabalhavam e viviam, vestirem-se a caráter para melhor compor o cenário medieval que os visitantes buscavam, sonhavam e viam ali a chance de realizar seus desejos e fantasias ou tão somente respirar diferentes ares e experimentar a tranquilidade no isolamento do local. Para a grande maioria o que valia mesmo era estar numa antiga construção de séculos de existência e muita história guardada em seus aposentos e jardins.

A leveza do ar da noite, morna e absolutamente silenciosa, o luar diferente e a varanda enorme faziam parte de um ritual em que nem mesmo o cansaço a fazia esquecer. O olhar se perdia naquele farol e o sono ardia em contato com aquelas luzes que iam e vinham num bailado que encantava e hipnotizava. Ia para cama sem perceber que de lá saíam fluidos, cores e luzes cintilantes em direção a sua janela aberta. Deitava-se e não demorava a adormecer. O coração se acalmava , o corpo perdia seu peso e fluía por entre os lençóis azulados e perfumados. Logo, sem que pudesse descrever o que se passava, sem sequer abrir os olhos, numa eufonia que fazia levitar a alma, pequenos pontos azuis e brilhantes ocupavam seu quarto. Transformavam-se em seres presentes e ladeavam-lhe a cama. Um homem, duas pequenas crianças, um menino e uma menina se aproximavam de seu rosto, beijavam-na e passavam as mãos sobre a cabeça, o cabelo, numa ternura que desafiava os anjos e arcanjos mais doces do universo. Ela não entendia mas sentia um amor imenso tomar-lhe a existência e se deixava levar por isso tudo que ali aparecia todas as noites. As crianças sorriam, cobriam-na e o homem tomava-lhe as mãos, beijava os lábios e fazia transparecer algumas lágrimas. Olhava fixamente para o rosto daquela que não esquecia, não abandonava e amava cada vez mais. Deixara em testamento todas as instruções para que se tornasse a verdadeira dona daquele castelo;o que fora seu por direito deveria continuar a pertencer e lhe cabia toda atenção e melhor lugar para repousar durante as noites. Não tomara conhecimento dos séculos que passaram, das mudanças e de seu desejo sendo transformado a cada novo proprietário. No entanto, como se fosse uma lenda, uma lei maior em documento, sempre se deixava aquele aposento para a governanta. Mesmo nem percebendo as mudanças, ignorando a total loucura em que vivera e divagara a sua amada esposa durante muitos anos até perder-se sem que se soubesse onde fora parar, ele sabia que ela sempre estaria ali. Era assim que o desejava e desta forma a guardara.

Deu-lhe mais um longo e apaixonado beijo, passou as mãos por sobre seus seios, cobriu-os logo depois e afastou-se. Tomou as mãos das crianças olhando uma de cada vez e disse:

_ Precisamos ir agora. Voltemos ao farol. A mamãe precisa descansar. Um dia ela se lembrará e voltará para se juntar a nós. Não vai demorar e no entanto, sinto como se fosse muito, infindável espera. Sorriam, a nossa rainha estará aqui e nós sempre voltaremos para revê-la. Acenem para a doce mãe que traz no coração a lembrança guardada de um dia tê-los gerado em nome de um amor maior e infinito. Ela se lembrará, esperemos em paz!!

Os pontos brilhantes partiram de volta para o farol, a brisa da madrugada fez nascer a esperança e a palidez da manhã. Aquela que muito representava para os habitantes do farol abria os olhos e não conseguia jamais explicar os sonhos iguais de toda noite que costumava ter.

Quem disse que sonhos precisam se explicar ou serem lógicos?

Sonhos são justamente o que são, se os esclarecermos não haverá mais mistério e sem este ingrediente sutil, não sonharemos mais!

Beijos,

Anjo.

Cristiane Maria
Enviado por Cristiane Maria em 13/06/2009
Código do texto: T1647805
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