Testando a Arma
Na rua molhada, 1:40 da noite, mãos no bolso, cabeça erguida, ela caminhava com passos certos, mas sem pressa. Respirou o ar fresco da noite molhada, logo depois ergueu o rosto em direção ao céu, mas não encontrou a lua. Iria chover novamente. Na rua só se ouvia seus passos e o de outra pessoa que caminhava apressada. Um carro surgiu, seus faróis iluminaram a rua, mas ela não se virou. Continuou a caminhar e respirar, pois não era o barulho do carro que esperava.
Respirou fundo e subiu no meio fio, fingindo-se equilibrista, no seu rosto um ar de sorriso. Amava a noite, amava as ruas.
Não percebeu que o carro quase parou, não viu que a outra pessoa com pressa, já ia longe.
Com o mesmo sorriso no rosto, desceu do meio fio e pisou no asfalto molhado, agora olhando os próprios tênis, levou a mão ao bolso de trás da calça, para pegar a chave, logo estaria em casa.
Nesse instante quebrando o silêncio da úmida noite, ressoou
um tiro, junto veio um relâmpago no céu e o ribombar de um trovão. O carro negro com os faróis altos acelerou e ultrapassou o corpo que tombava. Sumiu na noite.
Devagar como se fosse cena de um filme, os braços se abriram e o corpo tombou num abraço de encontro ao chão. O rosto ainda sorridente bateu forte na umidade do asfalto num beijo bruto e longo. Os braços permaneceram abertos, abraçando o asfalto. E o corpo por instantes viveu a solidão dos mortos que não se sabem mortos.
As casas da vizinhaça aos poucos tiveram suas luzes acesas, alguns corajosos curiosos abriram suas portas.
Junto ao meio fio, a chave ainda presa na mão, eles avistaram a moça de calça preta, camisa e camiseta brancas, abraçando o chão. Logo a identificaram e alguém foi escolhido para avisar a família. A amiga que ela se separara há pouco, logo chegou e foi retirada em estado de choque. A mãe não conseguiu se levantar após dois desmaios e o pai não soube o que dizer ao avistar o corpo se empapando de sangue, só se abaixou para pegar a chave, ainda segura na mão da filha morta. O filho mais novo, olhava a irmã e chorava agarrado as pernas do pai. Alguém chamou a polícia.
Um barulho de carro, todos olharam e reconheceram o namorado da vítima, o rosto colado no chão parece se mover, o sorriso parece aumentar. A morta sugere uma súbita ressurreição. O jovem apaixonado, ao reconhecer sua amada, salta em meio aos curiosos e chamando o nome da falecida, abraça o corpo inerte , que desfaz o abraço com o asfalto frio e sem um traço de vida, se vê sacudido nos abraços desesperados do ente esperado.
Outro trovão. Grossos pingos de chuva começam a cair. Os curiosos se dispersam. Fica o pai mudo com a criança desesperada a chorar agarrada as suas pernas e o namorado inconsolável, abraçado ao corpo ensanguentado e imóvel da mulher amada. A mãe, em casa, teve outro desmaio. No asfalto apenas a morta e os três que não percebem que a chuva agora os molha sem dó. A água da enxurrada, tingida de sangue e temperada de lágrimas, desce pelas ruas junto ao meio fio e parece cantar. Cantar para morta equilibrista que amava caminhar nas noites.
Na rodovia, um carro segue veloz, no banco ao lado do motorista, um jovem drogado, examina uma arma e sorrindo pro vento, encarando a noite, ele grita:
_ Não é que funciona!
Anicuns, 11 de fev/1994. (2:25 da manhâ)
Aqui essa história só aconteceu na ficção, mas todos os dias morrem alegres meninas e garotos cheios de vida, só por cruzarem com malucos drogados e sem objetivos de vida. Isso tem que parar.