NUNCA MAIS!

Na manhã em que completa 40 anos, Allan vê um corvo. O animal está sobre o umbral de uma grande porta que dá entrada a uma edificação gótica. Allan tem cabelos compridos, logo abaixo das orelhas, penteados à exaustão para a direita; testas largas; bigodes muito negros e um olhar triste – olhar este que não consegue se desviar do corvo. A ave parece estar ali por causa dele. Por um instante, ele hesita e olha para o chão em direção aos próprios pés, ajeitando ao mesmo tempo e meticulosamente a bengala em uma reentrância que separa duas das pedras que formam o calçamento. Calmamente, e desconfiadamente, volta sua atenção ao corvo e vai na direção do emplumado, que não esboça nenhum medo.

“Como é negro”, pensa. “Por que estará parado ali, naquele umbral?”, suspira. Allan pára a poucos metros do corvo e sente um calafrio percorrer-lhe a espinha, como se alguém lhe soprasse a nuca. Um sopro gelado. Olha em volta, a rua está deserta. São dez horas da manhã de um dia cinzento. A névoa da manhã, ao invés de se dissipar, só aumenta. O homem alinha o terno, a gravata, passa a mão nos cabelos – da esquerda para a direita – e olha para a ave agourenta. “De onde vens?”, pergunta diretamente a ela. Não há resposta, mas ele se assusta por ter feito tal pergunta a um animal.

Allan respira fundo e tem a impressão de sentir cheiro de flores. Fecha os olhos e busca o ar novamente para tirar a dúvida, mas o ar lhe chega limpo às suas narinas. O corvo vira a cabeça levemente, de lado a lado, enquanto fita o homem, como se procurando compreendê-lo. “O que queres de mim?”, indaga Allan enquanto enxuga o suor da testa com um lenço alvíssimo de linho. Silêncio do corvo. Aliás, tudo se encontra quieto. Nem o vento chia. Incomodado, Allan aguça os ouvidos e percebe o barulho de um trote à distância. Uma carruagem parece se aproximar e ele fica na expectativa de sua passagem.

A condução demora a chegar, apesar de parecer vir em alta velocidade. É toda negra e tem dois cavalos robustos, negros e de patas largas a puxá-la. O cocheiro está com um capuz, mas Allan pode ver bem as órbitas vazias quando ele passa. Não há pele sobre os ossos do condutor da carruagem, nem lábios cobrem seus dentes prateados. Allan esquece momentaneamente o corvo e escuta claramente as palavras “Nunca mais!” serem ditas. O cocheiro dá-lhe as costas e some na névoa. “Quem disse isso? Quem falou?!”, grita o homem em meio à rua deserta.

O corvo não sai de seu lugar, apenas abre as asas. Allan volta-se para o corvo, mas vacila por não ter mais a bengala à mão. Apertando os olhos, ele dá um close entre os dedos; abre-os, fecha-os seguidamente. Incrédulo, procura a dita no chão próximo aos pés, que estão descalços. Devagar, traz a vista para as pernas, que vestem calças cáqui muito surradas e sujas. Não tem mais paletó e a camisa está rasgada e amarelada. “O que está acontecendo? O que você está fazendo, ave amaldiçoada?!”, perde o controle.

Anoitece sem que a tarde passe. Na escuridão, com os lampiões dos postes apagados, ele passa a mão pelos cabelos e sente-os desgrenhados. Fecha os olhos e cobre-os com as palmas e os dedos cerrados. Allan chora. Começa a soluçar e os lábios espumam. Ao destapar os olhos, já é dia novamente. Ele pisca mais vagarosamente e escurece mais uma vez. A lua está encoberta. O corvo vira o bico para a esquerda... para a direita... e o homem cai de joelhos, aninhando a cabeça sobre as pernas e protegendo a nuca com os braços cruzados. Adormece ali mesmo. O corvo, então, fala: “Nunca mais!”

Allan levanta-se e pergunta: “Foi você que falou?!” O bicho de penas negras bate asas, voa por sobre a cabeça do homem, e pousa nos ombros do cocheiro, que o espera do outro lado da rua. Allan sente um vazio sobre seus pés e cai. Ao cair, acorda – gritando em meio à rua. Todos em volta observam-no assustados e abanam as cabeças em sinal de reprovação. O homem olha para o umbral e o corvo não está mais lá. Do outro lado da rua, apenas barracas de frutas. Ele gira vacilante nos calcanhares, sem a bengala para apoiá-lo. Quando pára, um senhor muito distinto, vestindo terno, camisa branca, de cabelos muito bem penteados, bigode negro e portando uma bengala, encontra-se fixado à sua frente. O senhor fala: “Chegou a hora, vamos, Edgar?” E o homem responde: “Nunca mais!”