Zumbi dos Palmares (Brasil 500 anos)

Um povo sempre traz em sua memória, os homens que se ergueram acima de suas vidas e inscreveram os seus nomes na história. Na data em que fazemos 500 anos de idade, é para o ano de 1800, que voam as nossas lembranças, neste pequeno relato.

" Vivia a nossa pátria mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída, em tenebrosas transações,

Seus filhos erravam cegos pelo continente

Levavam pedras feito penitentes, erguendo estranhas catedrais.."

( Vai passar, de Chico Buarque)

Ainda éramos novos. Viviamos sob o jugo de Portugal. Mandávamos para a Coroa, nosso açúcar, nossas pedras preciosas, nosso ouro e nosso sangue. Os negros havia sido sequestrados de suas terras para servirem como escravos aqui nestas paragens, nas fazendas dos senhores. Dia e noite, noite e dia, era um sofrimento de dar dó. A rotina dos negros se resumia em trabalhar dezoito horas por dia e serem espancados . Foram muitos os que morreram por conta dos castigos desmedidos. Expoliados, subtraídos á força de sua liberdade, vendo seus filhos nascerem cativos e marcados como escravos, os negros sempre podiam tentavam empreender fuga da terra dos senhores. Aproveitavam a escuridão e o silêncio da noite, para se embrenharem mata adentro á busca da liberdade. Muitos eram perseguidos e recapturados pelos capitães-do-mato, que eram homens investidos de poderes pelos senhores de escravos, para vigiar e castigar os negros fugitivos. Os que conseguiam seu intento buscavam lugares ermos para morar. Ali construíam suas choupanas. Quando se ajuntavam muitos nesses lugares formavam os famosos quilombos ou quilombolas. Nesses lugares os negros plantavam suas lavouras, jogavam capoeira, brincavam o jongo, caçavam pelas redondezas, pescavam e faziam pequenos artesanatos, criavam seus filhos em liberdade. O maior e mais famoso dos quilombos, foi o de Palmares. " ..negro entoou um canto de revolta pelos ares, do quilombo dos palmares, onde se refugiou.." (Clara Nunes, Canto das três raças). Incrustado numa serra cheia de palmas, daí então o nome, os negros fizeram o maior quartel general da nossa história.

Em seus maiores dias o quartel-mor dos negros chegou a ter em sua fileira, sem contar mulheres e crianças, mais de quatro mil homens, que sabiam guerrear. Nos Palmares, sabe-se também, viviam alguns brancos e indios. A maior parte desta legião de homens negros quando não estavam lutando para defender sua liberdade, passavam o dia trabalhando em suas lavouras. Quando ia espardecendo(aquele pedacinho da tarde que não é mais dia, e tampouco, não é noite ainda), os negros iam se achegando para uma grande clareira que havia no centro de Palmares. De um a um, de dois em dois, de três em três, sozinhos ou em pequenos bandos, os negros iam chegando.

Uns ficavam de pé, outros se punham de cócoras, e conversavam uns com os outros, num converseiro que parecia que nunca ia ter fim.

O fumo de corda era tirada do bolso, quicado na palma da mão calejada, a "paia" do milho era habilmente cortada num retângulo pequeno. O fumo era depositado na paia, esparramado com o dedo. Depois a mão forte enrolava a paia, que por fim era umedecida com saliva para não se soltar. O cigarro era aceso com a binga e levado á boca. Enquanto o negro proseava, o cigarro de paia dançava no canto dos lábios grossos. Eram negros adultos, velhos e crianças. Eram eles os donos de Palmares. Escravos fugidos da chibata e do pelô. Alguns traziam cicatrizes no corpo, tais como, orelhas laceradas, pés amputados, dedos destroçados. As cicatrizes na alma

eram perceptíveis pelos olhos que guardavam mágoas e tristezas, lembranças dos açoites brutais e impiedosos a que haviam sido submetidos. Os homens vagarzinho formavam uma grande roda. Um deles fazia cantar o berimbau. Era hora do jogo. Alguém acendia uma lamparina, pois a noite definitivamente já viera. Os negros jogam jogo lento. É capoeira de angola. O berimbau e os negros estremecem de saudades da África. Jogo lento, quase parando. Jogo mais de se ver a beleza de movimentos lentos. Os lutadores vão se revezando no centro da roda. Os que formam a roda cantam:

" A UMBO KO WA

IYA RI DEGBE

O ALI DE SI

OMAR LOWO"

Depois de um bom tempo de jogo, parecendo combinados, os negros subitamente param de cantar. Se curvam e pedem benção áquele que acabou de chegar. Juntos, uníssonos, suas vozes reverbera na clareira:

"A sua benção pai!"

É para Zumbi a saudação. Apesar de jovem ainda, em sinal de respeito, todos o tratam por pai. É ele, o grande comandante de guerra dos negros, o senhor da liberdade. Os negros jovens, velhos, meninos, meninas, mulheres, todos sem exceção, o veneram.

É para Zumbi o primeiro apanhado de mel de jataí furado no tronco da embaúba; é dele também a primeira fruta que amadurece e a água da moringa, que ele bebe, é trocada três vezes ao dia.

Os negros amam Zumbi. Zumbi põe em perigo a sua vida em prol da liberdade dos negros; e os negros estão dispostos morrerem a qualquer instante pela vida de Zumbi. Eram todos eles, os negros, de uma irmandade admirável.

Negro Zumbi, cabelo pixaim, zóios parecendo duas jabuticabas e uma andar que lembra os felinos.

"A bençao meu povo!", responde o Zumbi com sua inconfundível voz de barítono. Zumbi pede para que recomecem a luta. De revezamento em revezamento na roda, chega então a vez do comandante. Ele pede toque rápido, toque de São Bento. E lá vem um mortal, depois uma estrela, uma rasteira, martelo voador, ponteiro, cabeçada e tantos outros golpes mais. Zumbi varre o chão como se fosse um vento, um redemoinho. O senhor da liberdade dos negros tem uma elasticidade e agilidade assombrosa. Tem que se firmar os olhos para vê-lo. Não era sem razão que Zumbi era o mestre dos mestres de capoeira do quilombo. Por conta desta astúcia sem igual e dessa ligeireza ímpar é que os brancos o temiam. Um golpe desses aplicado pra valer traria a morte com certeza, em fração de segundos.

No jogo da capoeira Zumbi é incansável e imbatível.

Dez homens junto não pode com ele. Por fim Zumbi para e pede licença para se arretirar.

Então o rei lentamente se vai seguido de oito ou dez valentes que lhe fazem guarda permanente. Vagarzinho vai sumindo em direção á sua choupana.

Vai repensar táticas de guerra para derrotar os brancos que estão muito próximos de Palmares.

No outro dia, bem cedinho, Zumbi convocou seu conselho de guerra.

O conselho era formado por dois guerreiros jovens, dois guerreiros anciões, uma mulher, uma criança e mais Zumbi.

Zumbi acreditava que a valentia aliada á experiência e a prudência, junto com a inocência, formava a razão.

Depois de ouvir todos, mandou a Domingos Jorge Velho e seus soldados que estavam nas proximidades de Palmares, o seguinte termo:

"Eu, Zumbi, rei dos Palmares, declaro nesta data, no mês das chuvas, no ano de 1867, guerra de morte aos capitães de mato e seus senhores, á Domingo Jorge Velho e seus soldados, ao governador e sua família. Guerra de morte, sem tréguas, com fim somente quando emborcar de cara no pó da terra, ferido mortalmente o último inimigo.

Aviso ainda que clemência jamais concederei, prometendo aos inimigos, os soldados da cor branca, uma morte rápida de punhal afiado rasgando a garganta. Dê-se comunicado ao governador e aos seus vassalos, que derrotado os mercenários que se encontram em solo do meu reino, marcharemos numa imensa procissão, jamais vista, para invadir fazendas e as capitanias, para libertar de vez e para sempre o irmão que ainda está escravo.

Assinado: Zumbi dos Palmares"

Ao receber a declaração de guerra de Zumbi, Domingos Jorge Velho tremeu de ódio e rancor , pela insolência e petulância do negro.

Mordeu o canto da boca até sangrar. Releu a mensagem palavra por palavra, depois a amassou na palma de sua mão e atirou fora.

O negro safado, macaco imundo haveria de pagar o desaforo, pensou colérico.

Os soldados mais próximo perceberam sua raiva e ficaram com medo.

Domingos Jorge Velho não era um homem comum. Não tivera infância, pois ainda garoto, um velho bandeirante o levara pelos sertões adentro a busca de índios e de ouro.

Conhecera desde cedo os perigos dos sertões: a febre ruim, os mosquitos, a tocaia dos índios, as cobras venenosas. Resisitira a tudo e se tornara um forte. E o menino sem a candura da mãe e a dureza da bandeira, se tornara um jovem frio e cruel. Duro e aguerrido nos combates, implacável e sangrento com as tribos. Bravo como nenhum outro ganhou o respeito e o temor dos homens mais velhos da bandeira.

Era sem compaixão. Era cruel e sanguinário até quando não havia necessidade. Aos dezessete anos já liderava sua própria bandeira, tendo ao seu lado homens que tinham o dobro de sua idade.

Suas entradas eram sinônimo de riqueza, posses e muitas mortes.

Jamais voltara sem índios e ouro, ainda que deixasse um rastro de sangue atrás de si.

De um salto montou seu cavalo e disparando um tiro de espingarda, gritou: " Soldados, a guerra começou!" Era o ano de 1859.

Nos campos, vales, negros e soldados enfurecidos, liderados por seus chefes, se bateram ferozmente, sem descanso, nem dominicais.

Os brancos com seus rifles, espingardas, garruchas; os negros com sua capoeira, seus facões, punhais, emboscadas e os temíveis fossos com pau-de-ponta fincados pra riba. As baixas eram muitas dos dois lados. No ardor da luta não havia tempo para chorar ou enterrar os mortos. Domingos Jorge Velho e Zumbi dos Palmares fizeram uma guerra encarniçada, dia e noite, noite e dia, durante oito longos anos.

Por fim, por causa de um ato de traição, o quilombo foi invadido.

Na cabeça do gigante Zumbi, eu podia adivinhar um pensamento desesperado. " Ele reuniu seus generais, subiram para o alto de um penhasco, de lá, ainda fizeram um gesto de desafio para as forças invasoras e depois se precipitaram no abismo" ( Veríssimo Érico, in As aventuras de Tibicuera)

A tropa vencedora marchou decidida para o centro de Palmares. Através do artifício vil da tortura, os soldados deram fim lento aos negros feridos.

O solo de Palmares ficou úmido com o sangue escorrido dos corpos dos negros. A guerra estava ganha.

Os soldados riam de felicidade. Foi então que Olorum deixou as matas, aproximou-se do corpo estendido de Zumbi. Olorum passou unguento nas feridas, curando-as. Depois Olorum ordenou a Zumbi que acordasse do sono. Ajoelhado ao lado de Zumbi, sustentando com uma das mãos sua cabeça, Olorum, deu-lhe de beber da água de cinco cabaças douradas que estavam ao seu lado e, então, falou pra Zumbi:

" Fio, agora cê tem no corpu us segredus dus ventu, das fébris e das mortes. Vá libertar meu povu".

Zumbi levantou, pediu a bençaõ a Olorum e partiu cantando uma canção de guerra. Zumbi encontrou Domingos Jorge Velho e seus homens voltando da campanha de Palmares. Iam pra Recife. Escondido no meio de uma moita, Zumbi contou os brancos. Eram em torno de seiscentos homens. Quando a noite eles pararam para dormir Zumbi convocou os ventos. Do nada começou uma ventania louca. Zumbi ria alto no meio da ventania vendo o desespero dos soldados. Os que foram mais lerdos para acordarem, não conseguiram agarrar-se ás árvores, foram arrastados não se sabe para onde.

Depois do vendaval, Zumbi convocou as águas. Um aguaceiro como nunca se viu. Uma chuva forte, fria, com granizos, raios e trovões.

A tempestade desabou a noite inteira. Andando por entre a chuva Zumbi gritou o segredo dos bichos. Zumbi gritou alto na língua dos cavalos para eles irem embora. Os cavalos rebentaram suas amarras e se embrenharam esbaforidos na mata. Quando amanheceu metade do exército de Domingos Jorge Velho estavam mortos ou desaparecidos. Zumbi então, sem piedade, esparramou o mistério das febres nos viventes.

Os homens começaram a tremer feito varas verdes. Seus corpos ardiam de calor. Por querer próprio Zumbi tinha poupado da febre Domingos Jorge Velho. O negro saiu da moita e foi andando na direção dos que estavam febris. Eles ficaram apavorados. Imediatamente se ajoelharam e pediram cêmência ao comandante dos negros. Zumbi estava possesso. Seu rosto era um esgar de ódio e ele gritava alto em nagô e iorubá. Por fim o gigante negro ordenou que eles dessem fim ás suas próprias vidas. Domingos Jorge Velho e mais oito ou dez, que estavam ainda sãos, assistiram atônitos, sem nada poder fazer, os soldados sacarem seus revólveres e dispararem contra suas próprias cabeças. Antes que eles pudessem se refazer do espanto, uma nuvem escura, do tamanho cem casa de senhores juntas, veio vindo em sua direção.

Um deles gritou: " Deus do céu nos proteja! São abelhas!"

Eram as temíveis abelhas africanas, que despencou sobre eles, ferroando-lhes boca, cabeça, olhos, mãos, braços, costas, pernas e pés. Quando as abelhas se foram Domingos Jorge Velho estava sozinho e assustado. Ele andou dez dias e dez noites até chegar a Recife. Chegando lá foi ter a sós com o governador. Contou-lhe como destruira Palmares e da forma estranha que seu exército fora dizimado quando voltava da campanha militar. O governador lhe contou então que muitos capitães de matos haviam sido misteriosamente degolados e todos atribuiam essas mortes ao Zumbi dos Palmares. Pela primeira vez em sua vida Domingos Jorge Velho teve medo. " ___Seria Zumbi um morto-vivo?"

Era essa a notícia que corria nos centro e arredores de Recife.

Os negros apoiados por esse espírito do outro mundo deixavam as fazendas dos senhores para irem se organizar nos quilombos.

Domingos Jorge Velho recebeu sua recompensa pela guerra vitoriosa contra os negros e embarcou no primeiro navio que ia para Portugal.

Dizem que certa quando fumava no convés, o gigante apareceu.

Desesperado Domingos Jorge Velho atirou contra Zumbi e de nada adiantou. Os tiros vazavam seu corpo sem deixar ferimentos.

O comandante dos negros tirou a arma descarregada das mãos de Domingos Jorge Velho como se tira o doce das mãos de uma criança.

Depois dobrou o braço enorme em volta do pescoço do bandeirante e foi apertando. Jorge Velho esperneava e se debatia tentando escapar daquela gravata fatal. Depois de alguns minutos seus movimentos foram diminuindo até parar de vez. Estava morto.

O gigante dos negros ergueu o corpo do branco acima de sua cabeça e o atirou no meio do mar. O gigante pulou na água e cantando cançoes de guerra foi nadando em direção ao continente.

Os marinheiros assistiram a este espetáculo, imóveis, mudos e assombrados.

Vendavais assolaram Recife, epidemia de febre desvastava a população branca, serpentes, lacraias e escorpiões invadiam as casas dos senhores, cavalos não paravam nos estábulos e capitães de mato sistematicamente e misteriosamente apareciam degolados. Zumbi, o morto-vivo tornara um terror a vida dos moradores brancos de Recife.

Aconselhada por um velho padre, uma jovem princesa com o nome de Isabel, mandou dar conhecimento a seguinte lei:

" A princesa Isabel, regente em nome de sua Majestade, o Imperador e Senhor Dom Pedro II, faz saber a todos os súditos do Império, que a Assembléia Geral, decretou e ela sancionou a Lei seguinte:

art. I - É declarada extinta desde data desta lei a escravidão no Brasil;

art.II - Revogam-se as disposições em contrário".