TIRO E QUEDA - (parte final)

TIRO E QUEDA - (parte final)

Não era uma sexta-feira 13 mas 16, do azíago mês de cachorro louco, o ano de 61 quase no fim. Desempregado e aniversariando naquela data, João “Cabra da Peste” – leonino do 3º decanato – acordou sobressaltado, num barraco no Morro da Formiga.

Suando frio, confessou à sua fiel “Amélia” que tivera outro daqueles pesadelos... gigantesco leão a perseguir-lhe os passos (e os gritos) por toda a savana africana.

-- “Janjão”, meu bem, será que vais torrar de novo a “grana” do nosso almoço no jôgo do bicho ?!

-- Vou, nega, um dia acerto esse leão de jeito... só assim a gente sai da lama.

Despediu-se com um “dominus vobiscum” (adorava latim) e saiu.

Dito e feito, acertou no milhar... Voltou para casa com o coração aos pulos, ele aos saltos no meio da avenida, desligado do mundo.

-- Hei, cuidado com o carro... (carro? que carro?! paft-pum !!!)

E lá se foi dinheiro para todo lado, com o corpo estendido no chão, desconjuntado e moribundo.

-- Anotaram a chapa do veículo sim e está com o guarda... L-E-O 1661! Do cara não sobrou quase nada, ficou igual cabra que leão “janta” na selva !

Tarde demais reconheceu que mudara-se para um local de vizinhança “deverasmente” perigosa. A princípio, ignorou o assédio e as provocações. Esquálido, “rato” de biblioteca desbotado por anos e lustros de penumbra, o “quatrôlhos” Dirceu Borboleta da Matta levava a vida sobressaltado. Sua 6º série completa e o ar de doutor incomodavam o “zoológico” local. A vidinha pacata que sonhara para si estava virando uma... “áfrica”.

Ora era o orelhudo coelho, mais a hiena e seus priminhos, a jogarem bola na porta de sua casa. Já a raposa malandra rondava à noite, com o leão e o tigre rosnando “sorrisos” de poucos dentes, enquanto a pavoa liberada, na calçada em frente, exibia suas coxas magras e a suposta riqueza de “classe média pobre-pobre”.

Por fim, as “piranhas” da zangona abelhuda tentavam morder-lhe os fundos, apesar de seus pimpolhos bichos-preguiça viverem pendurados na grade da casa, estendendo a mão com olhos pidões. Assistindo a tudo, o sapo-boi verde-oliva policiava a vida do distante “vizinho” com despeito e inveja. Se dependesse só dele o sujeito defuntava.

Mas Dirceu resolveu seus problemas duma só tacada, quando colocou dentro de casa um tremendo “canhão”. Dona Ursolina, avantajada elefanta de ar carrrancudo, transformou abusados lobos em dissimulados carneiros.

Na cela superlotada, de reles bandido passara a herói. Cercado de admiradores e a coberto do olhar indiscreto dos carcereiros preparava-se a 25 dias para o grande golpe de sua vagabunda vida... fugir da cela da Delegacia recém-inaugurada. Segundo a propaganda oficial o prédio era inexpugnável, fortaleza com circuito fechado de TV e todo o aparato técnico para tratar homens como animais selvagens.

Aos 30 dias, estava pronto! Magérrimo, pálido, de olheiras fundas mas com um brilho de vitória a cintilar nas pupilas, fez sua primeira refeição decente em um mês, ele que jejuara tanto que o apelidaram de “homem-cobra”.

À meia-noite cantaram-lhe parabéns e, após a última ronda da madrugada, escalou com dificuldade a “escada humana” de quase 60 corpos até a clarabóia do teto da cadeia. Sob delirantes aplausos, deslizou com algum esforço os ossos oleados por entre as grossas barras de aço e sumiu na escuridão, para nunca mais ser encontrado.

O “homem-cobra” virou verbete nos anais da polícia civil parauara e ajudou, com sua fuga, a melhorar o “rango” dos demais condenados. Com boa comida, engordavam o suficiente para ninguém mais aprontar outra daquelas.

Levar sua decisão final até as últimas consequências era questão de honra. Cansara-se das constantes humilhações, do menosprêzo com que todos o tratavam naquela casa, dos dias de fome nos tempos ruins e até de alguns maus tratos. Sua paciência chegara ao fim !

Jurgenaldo tratava, com um barqueiro, de um "rôlo" envolvendo sua velha espingarda artesanal mais o cão de caça em troca de esguio "casco", canoa longa e leve feita de robusto tronco de samaúma.

Pelos constantes olhares a ele dirigidos, "Fininho" entendeu que virara moeda de escambo, apesar dos quase dez anos de canina fidelidade ao dono ingrato. Ferido nos brios, embrenhou-se na mata cerrada, fugindo até o mangal que bordejava imenso rio, negro e lodoso.

As enormes patas -- sinal de cão caçador -- tatearam com cuidado os imensos galhos que atiravam-se sobre as águas, espécie de polvo vegetal petrificado na margem lamacenta. Com os dentes cravados numa pesada pedra, equilibrando-se sobre o trampolim de galhos, limo e folhas, lançou-se o cão de encontro ao fatal destino.

O lençol escuro e frio cobriu aquele corpo esquálido, costelas à mostra, angústia, determinação e desespêro sendo afogados por milhões de litros d'água. A honra lavada em lama, molares e caninos aferrados ao naco de rocha, o pequeno corpo preferiu a morte a uma vida infame, com novo dono, novas torturas.

Dias depois, por ironia do Destino, o corpo disforme do cão amanheceu no modesto porto do casebre de Jurgenaldo. Sem a pedra e sem alguns dentes na boca inchada, "Fininho" de olhos esbugalhados e sorriso sardônico mirava seu ex-patrão com ar de alívio. Pela primeira vez na vida Jurgenaldo chorou... fôra por água abaixo um ótimo negócio !

Tentou com afinco e persistência tornar-se músico de talento, mas tal qualidade teimava em ficar bem longe dele.Por fim, desistiu e, pouco depois, era o barman mais solicitado da cidade e seu boteco o mais famoso.

Lá, o cliente saboreava batidas e "rabos de galo" feitas no bojo de dourado trompete. Era a glória !

O grisalho e alquebrado LUCINERGES COUTO, junto com José Luís Coelho, jovem dinâmico e decidido, apresentaram-se a São Pedro nos portais do Paraíso, após muito vagarem por limbos e purgatórios pois, no Inferno, Satanás não os queria nem pagando estadia.

O porteiro celeste torceu o nariz e o vasto bigode, arqueou as sobrancelhas e "abriu o verbo":

-- "Escritores não são benvindos no Céu. Vocês não passam de uns inúteis, nada constroem de concreto para a humanidade e ainda se acham o máximo, só porque rabiscam umas bobagens e inventam filosofias baratas, para sonsos, trouxas e cegos. Sumam daqui"!

-- "Per'aí, ô chaveiro de meia tigela... quem é você para nos julgar? Já esqueceu que traíste o Filho de Deus por 3 vezes lá na Terra"?, retrucou em altos brados "Zé" Luís, dedo em riste na cara do santo velhinho.

Deram as costas à entrada celestial e sumiram entre nuvens, ambos preocupados com seus futuros. Foi quando Deus-Pai Todo Poderoso, que após imprimir as Tábuas da Lei gostara do estranho ofício (!?) de escritor, apontou o divino indicador para a dupla e os transformou em belas estrelas.

Os céus de Belém não são mais os mesmos... tremeluzindo com luz opaca mas firme ou vibrando intensa e ocasionalmente, dois novos astros enfeitam de poesia e esperança o firmamento desta "triste terra de tanga" (segundo "Zé") (1) ou deste "purgatório da cultura" conforme Lucinerges.

NOTA DO AUTOR: (1) conforme o artigo de José Luís Coelho no jornal DIÁRIO DO PARÁ, de 30/04/1989.

Em má hora a megaempresa comprar milhões de ações em moeda estrangeira e, com a baixa cotação do dólar, estava a um passo (ou a 1 níquel) da falência.

Contratou então um perito em desastres, especialista em soluções tresloucadas, para ir a Brasília, à casa do Chefe da Nação e ver o que era possível fazer para evitar a bancarrota. 48 horas depois, o Jornal Nacional comunicava ao país que o "totó" do Presidente fôra envenenado e corria risco de morte.

As Bolsas de Valores -- normalmente sensíveis até à gripe de foca -- enlouqueceram e o dólar disparou qual foguete espacial. A multinacional estava salva... e o Brasil um pouco mais endividado !

-- "Mata" essa "barata" se fôr homem !, berrou "seu" Lucindo com voz histérica, dando forte palmada na mesa.

-- "Considere a maldita "mortinha da silva"!, retruca o Apolinário na bucha, pronto para o embate.

Dona Anita, preparando ansiosa o ajantarado na cozinha calorenta, largou tudo num segundo ao ouvir a agitação nervosa dos homens lá na sala.

Armada com uma lata de "spray" contra insetos invadiu célere o reduto masculino, borrifando o ar tóxico no marido & convidados e empastando todas as peças do adorado jogo de dominó do compadre Firmino, sob o olhar atônito dos 4 parceiros.

-- Desculpem, vizinhos, mas barata aqui em casa é... tiro e queda. Não sobra uma nem para lembrança! Mas onde é mesmo que está a bicha ?