Identidade
Aquela noite não parecia ser real - normal, tampouco. Caio sentia-se como que em transe, contudo seus sentidos estavam acuradíssimos: tudo a sua volta transpirava significado. Aparentemente inexplicável; ele não se encontrava sob o efeito de nenhuma alteração em seu equilíbrio químico. Já havia há muito superado esse fantasma.
Nem mesmo o apartamento lhe parecia familiar. Uma iridescência azul, efeito do luar ou das luzes da cidade que se insinuavam através das persianas, banhava aquele conforto desorganizado que antes nunca lhe surpreendera. Seu próprio quarto, ao recebê-lo, aparentava estar metafisicamente preparado para o grande acontecimento.
Sentou-se na cama, sem intenção de despir-se tão cedo. Deitou-se de costas, mirou o teto, em seguida a parede à frente. Foi quando algo inusitado chamou-lhe a atenção.
O espelho do roupeiro. Havia algo lá. Algo o chamava, por sinal um chamado inaudível, mas irresistível. Caio levantou-se e, na tentativa de desviar o súbito temor, e ao mesmo tempo disfarçar a traidora curiosidade, passou a observar o seu reflexo. De início, acariciou o rosto devagar, tentou encontrar uma marca diferente. Então, de repente, surpreendeu-se de sua beleza. Sua própria beleza, exuberante e inocente ao mesmo tempo. Uma beleza eterna, imemorial, helênica, renascentista... Nunca havia se sentido tão compulsivamente atraído pela própria figura. Olhos doces, pueris; a cabeleira espessa, negra juba quase atingindo o alinhamento dos ombros, a boca insinuante, perfeita, sedutoramente hesitante...
Teve compulsão de beijar aquele reflexo. Pensou um pouco, porém, quase querendo resistir ao encanto. Num movimento brusco, virou-se de costas para o espelho e, com ímpeto insano, desvencilhou-se de toda a roupa que o cobria. Respirando em golfadas revigoradoras, fechou os olhos. Em seguida, voltou-se para a imagem refletida.
A visão era tão inconcebivelmente bela que Caio chegou a ficar com o espírito atordoado. Afagou lentamente seu torso, como se não se tratasse de seu próprio corpo. Permaneceu vários minutos na mais embriagante contemplação. Não, não queria mais saber de seu corpo, mas do corpo do reflexo. Este parecia adquirir vida própria. Uma vida verdadeira, algo que aquele jovem nunca tivera.
– Já me viste antes, Caio. Antes de tu o seres, eu o fui. A tua única vida encontra-se em mim. E tu acabas de encontrar o caminho para o Mundo das Essências.
– Mas... como posso encontrar um caminho que nem procurei?
– O tempo futuro não passa de uma freqüência a ser sintonizada, o presente lhe é quanticamente paralelo. Uma única virtude, por menor que seja, é um ducto transpessoal que funciona como um elo entre os estados da relação causa-efeito.
– Então... não seria coincidência?
– Talvez, mas não no sentido de acaso. Tu abriste uma pequena janela para a libertação. Alguém, do outro lado, compadeceu-se de tua pureza. E, assim, fez-se o intercâmbio. Mas... melhor seria se visses por ti mesmo.
Caio aproximou-se mais e olhou-o dentro dos olhos. Tocando-se mutuamente, os amigos se entregaram a um beijo longo e afetuoso. Ao final, ainda fitavam-se num misto de desejo e respeito. A imagem tinha um sorriso enigmático.
– Gostaria de mostrar-te algo. Estás preparado?
Caio não precisava responder. A imagem tomou-o pela mão e o puxou com delicadeza. Mas a travessia não fora assim tão simples. Todos os seus sentimentos viraram pelo avesso; uma fluidez envolveu seu corpo, fluidez sem tempo-espaço. Ele sentiu como se, por algum momento, sua consciência estivesse em todos os pontos do universo. Ouviu o som de mil correntes se rompendo ao mesmo tempo, muralhas a desabar, ondas a quebrar, sangue a correr. Então, reintegrando-se novamente, emergiu de um elemento líquido vivo e perfumado. Extasiado, voltou-se para a fonte de luz da qual era ele nada mais que pragmática extensão. Finalmente, encontrou-se desprovido de qualquer tipo de dúvida.
Pairando sobre a cidade que amanhecia, ondas de rádio e campos magnéticos anunciavam a volta da rotina. Uma energia renovadora envolvia as residências onde alguém despertava. Entretanto, muitos não tinham consciência do que ainda não viam, e continuavam a lamentar sobre os frutos de sua descrença.
Permaneceu atento àquele mundo de irrealidade. Ao início da tarde, observou um rapaz de semblante conhecido sair do prédio em que morava e descer a rua. Acompanhou-o do alto, compadeceu-se e refletiu:
“Há alguém lá embaixo que se esforça para ser igual a mim, mas no dia em que encontrar sua verdadeira identidade, seremos apenas um.”