TIRO E QUEDA (trechos)

TIRO E QUEDA (TRECHOS)

Raimundo Nonato era descendente de um povo que, geração após geração, "nordestinizou" aquela densa região, transformando-a quase toda num deserto.

Êle mesmo, com o espírito da caatinga a bradar dentro de si, não era muito "chegado" em florestas. Árvore para êle era só dinheiro ou, no máximo, cerca, carvão e, principalmente, travessas de sustentação das casas,

Num belo dia ensolarado, a canícula a cozer-lhe os miolos, saiu esbaforido do casebre de estuque e palha, voltando horas depois com um caríssimo "bonsai", que dispôs sobre o tronco podre de colossal samaumeira que um dia habitou soberana seu quintal.

Com os dedos da mãozarra à sombra do minúsculo arbusto, agradeceu aos céus por aqueles instantes de prazer.

Levar sua decisão final até as últimas consequências era questão de honra. Cansara-se das constantes humilhações, do menosprêzo com que todos o tratavam naquela casa, dos dias de fome nos tempos ruins e até de alguns maus tratos. Sua paciência chegara ao fim !

Jurgenaldo tratava, com um barqueiro, de um "rôlo" envolvendo sua velha espingarda artesanal mais o cão de caça em troca de esguio "casco", canoa longa e leve feita de robusto tronco de samaúma.

Pelos constantes olhares a ele dirigidos, "Fininho" entendeu que virara moeda de escambo, apesar dos quase dez anos de canina fidelidade ao dono ingrato. Ferido nos brios, embrenhou-se na mata cerrada, fugindo até o mangal que bordejava imenso rio, negro e lodoso.

As enormes patas -- sinal de cão caçador -- tatearam com cuidado os imensos galhos que atiravam-se sobre as águas, espécie de polvo vegetal petrificado na margem lamacenta. Com os dentes cravados numa pesada pedra, equilibrando-se sobre o trampolim de galhos, limo e folhas, lançou-se o cão de encontro ao fatal destino.

O lençol escuro e frio cobriu aquele corpo esquálido, costelas à mostra, angústia, determinação e desespêro sendo afogados por milhões de litros d'água. A honra lavada em lama, molares e caninos aferrados ao naco de rocha, o pequeno corpo preferiu a morte a uma vida infame, com novo dono, novas torturas. Dias depois, por ironia do Destino, o corpo disforme do cão amanheceu no modesto porto do casebre de Jurgenaldo.

Sem a pedra e sem alguns dentes na boca inchada, "Fininho" de olhos esbugalhados e sorriso sardônico mirava seu ex-patrão com ar de alívio. Pela primeira vez na vida Jurgenaldo chorou... fôra por água abaixo um ótimo negócio !

Definitivamente, não gostava de cachorros. Eram uns bichos enjoados, que recusavam a comida estragada que lhes servia com parcimônia.Também não bebiam da morna e fétida água, azêda pelo limo da vasilha e dos restos de alimentos, além de ousarem passar mal por causa do seu feijão com excesso de tempêros e gordura.

Pior: tinham a extrema audácia de morrer em pouco tempo, deixando seu filhinho desconsolado e triste. Uns nojentos, sem tirar nem pôr !

Comprou, então, imenso pastor alemão de ar agressivo e olhar atento, todo em gesso e porcelana, que "vigiava" a casa melhor que qualquer um dos anteriores.

Agora, quando êle chega do trabalho, Marcinho dá longos uivos de boas-vindas. O menino só faz "pipi" em postes e, à mesa, recusa tudo o que não fôr carne ou osso. O pai já está preocupado... a continuar nesse rítmo o garoto não demora muito sairá atrás da primeira cadelinha que cruzar com êle.

Voando, sobre as águas revoltas, o barco salva-vidas foi em disparada ao encontro das 3 jovens Marias semi-afogadas, todas em total desespêro e aos gritos.

Indeciso, o aparvalhado bombeiro acabou salvando somente uma delas. Pereceram Maria do Rosário e Maria do Sacramento.

Apenas Maria do Socorro se salvou porque, no derradeiro minuto, gritara a palavra certa.

O cavalheiro, de terno surrado e pasta de vendedor de planos de saúde, senta-se junto ao balcão do bar e pede, apressado:

-- Meu jovem, me sirva um cafézinho, que há muito tempo não provo um!

-- Café ZINHO nóis num téin, serve di ôtru ?

-- Não, meu chapa, você não me entendeu... pode ser de uma marca qualquer mesmo!

-- Quar qui é a marca, seu moço ?

-- Esquece... me vê aí uma água mineral com gás, sem marca, sem côr e nem tamanho. Será que dá, meu camarada ?

-- Ágoa minerá... sorforosa ô arcalina ?

Ah, meu São Benedito! Cancela tudo, "capiau", deixa prá lá! Escuta, eu posso ficar sentado aqui por um instante ?

-- Uái, pudê inté qui pódis! Mais num si isparrama muinto no banco i néin abre "as asa" pro mode num incomodá quein tá pagano !

E seguiu balcão a fora... O citadino afrouxou a gravata e pensou com suas abotoaduras de zero quilates: "Eita, Brasilzão pai d'égua esse, tchê" !

Em pleno "shabat" a multidão aguardava ansiosa a salomônica decisão real que elegeria a Mãe do Ano, na judaica Belém de priscas eras.

Centenas de candidatas sonhavam com os valiosos brindes. Ânforas de ouro, baixelas de prata, cortes de seda pura, xales de linho da Pérsia e felpudas mantas de lã, amontoadas no centro do pátio do templo enchiam de cobiça os olhos da populaça. Em silêncio e com espanto o povo ouviu do famoso rei de Jerusalém, em visita à cidade, o seguinte:

-- "Como todas vocês, mães dedicadas, merecem os parcos prêmios, ordeno que sejam feitos em mil pedaços e dê-se a cada uma o seu quinhão, como recordação. Assim seja..."

No que alguém murmurou entre dentes, no meio da massa humana:

-- "Porca miséria... Depois do caso daquele recém-nascido, lá no seu palácio, esse doido não decide mais coisa alguma" !

-- Eu vi com esses olhos que a terra há de comer... foi tiro e queda! O sujeito veio planando igual borboleta e estatelou-se na calçada.

-- Mas porque esse louco cometeu suicídio... e logo do alto do prédio?

-- Só que não foi suicídio, moço; era um protesto contra morte da filha, assassinada por bala perdida durante um tiroteio da Polícia!

-- E desde quando, no Brasil, alguém protesta se matando ?

Afastou-se acabrunhado da multidão sedenta de sangue e de detalhes mórbidos, desejando intimamente que todo político que protestasse subisse antes ao tôpo de algum edifício. Em muito pouco tempo nosso país estaria bem melhor, com toda certeza!

(N. do A.: o trecho final foi escrito em meados de 2000, quando balas perdidas não passavam de um mero pesadêlo noturno.)

"NATO" AZEVEDO

OBS.: confira o texto completo no e-book "QUASE NADA..." no link

http://natoazevedo-quasenada.blogspot.com/