AS TISANAS DO VELHO BERNARDO
Por si próprio não faria. O corpo amiúde tomado por desestimulante apatia não o incentivava a movimentar-se, mas fora aconselhado a tomar alguns minutos de suas manhãs exercitando-se numa caminhada pelos pontos do tranqüilo vilarejo. Não que fosse totalmente sedentário, embora os leves movimentos da aeróbica e os amenos levantamentos de pesos que casualmente praticava já não fossem suficientes para o seu bem estar físico. Os remotos exercícios na esteira, nem se fala, o entediava; daí os terem definitivamente abandonados.
A caminhada haveria de lhe fazer bem.
As poucas ruas da vila justificam o pequeno número de casas dispersas, reconhecendo na figura do preto Bernardo e no seu ofício de preparar tisanas engarrafadas, --- no qual emprega a flora dos ermos locais --- seu mais ilustre morador. A paisagem bucólica do lugar propicia farta pastagem aos animais que ali ruminam tranquilos em meio as variadas cenas da movimentação humana no decorrer dos dias. São fatos que certamente incentivarão o seu ânimo frente a nova empreitada física.
Como tudo conspirasse a favor, o bom aconselhado Filózinho pôs-se a campo.
Consistia o exercício da volta passar frente das modestas vendinhas do centro comercial, que não passavam de três; caminhar em frente até ganhar uma parte do anel rodoviário que fecha em torno do lugar e andar por ele, margeando a mata até encontrar a rodovia principal; percorrendo-a, junto ao pasto, há de encontrar, por lá, acesso a uma rua lateral donde leva à casa de nosso esmorecido atleta. Termina, assim, a prática do exercício. Nada além de uma hora movimentando-se.
Com o passar dos anos Filózinho sentia, ao final de algum esforço físico na tentativa de puxar o fôlego, intuindo saciar os pulmões ansiosos, grande dificuldade para completar com êxito a respiração. Irritava-o os esforços tentando; debalde conseguia.
Entretanto, mal passado meia hora, insistindo novamente, puxava o ar que agora fluía às entranhas moderadamente, abrandando-lhe a preocupação. De forma que o processo respiratório, com o organismo descansado, permitia a passagem do ar, despreocupando-o. Essa acomodação veio constituir-se em prolongada convivência negligenciada consigo.
Seria algum bloqueio psicológico? Sequelas importunas de doenças respiratórias? Não! Não chiava o peito, nem nada! Sofrera, sim, como todo mortal, algumas cargas virais de gripes, embora não passasse disso. Bronquite, asma, ou qualquer doença cardio-respiratória na família ele desconhecia os históricos. Se o tio Cornélio morrera de repente, sabia-se lá o por quê.
Cuido haver dito que a rodovia municipal que chega ao vilarejo é margeada por chácaras devidamente formadas e consolidadas, e, confrontando-as pela outra margem, vê-se um vasto pasto superando os limites do loteamento rural. Para quem chega há de avistar, de longe, vigorosa árvore cuja prodigalidade estende suas galhas adentrando o pasto, à medida que, por outro lado, lança-as também por sobre a rodovia, oferecendo ao caminhante que por ela passa prazeroso abrigo contra as intempéries. Trata-se de um velho jatobázeiro. Fendido ao rés do chão, seus dois troncos cresceram quais dois siameses a sustentar as frondes perenemente viçosas, as quais nem as fortes ventanias do verão se atrevem a levar-te sequer as folhas; a robusta árvore desafia as tempestades com a resistência dos seus galhos, permanecendo, assim, firmes e fortes. As demais árvores da terra, fustigadas, retorcem e cedem ao vento.
Dias se passaram. Filózinho mais fatigado que o de costume deteve-se na árvore para alguns sofridos alongamentos. Apoiou-se num dos troncos do arvoredo; pressionou daqui, esticou dali, e dando por terminado o exercício sentiu-se satisfeito com a melhora. Prosseguiu então o seu caminho.
Arrancado porém de suas divagações as quais invariavelmente versam sobre os assuntos da terra, Filó surpreendeu-se com estranhas e novas imagens adicionadas as suas atuais preocupações. Em meio a elas, insistia surgir um personagem exótico, distante, que levemente vinha tomando corpo em seu consciente: nada mais era que a figura de um nobre, um príncipe herdeiro! Sim, um príncipe herdeiro! Mas o que significaria um ser da estirpe imperial em meio as plebéias divagações consigo? Não era um pensamento inteiramente estranho? Tentou voltar aos planos domésticos mas lá estava a intrometida figura do príncipe. Ensimesmado repassou boa parte do que vira, do que lera e do que fizera ultimamente, na esperança de identificar a tal aparição insistente.
E sua memória retroagiu e vasculhou... insistiu, vagou, e por fim, admirado, deparou-se perplexo focando finalmente em certa matéria publicada numa popular revista de ciências. Lá estava! O tal príncipe frente a um vaso de plantas com as quais mantinha reservada e franca conversação! Refletiu a respeito.
Determinada manhã, ao aproximar-se da árvore, outras circunstâncias atraíram seus olhos às diversas tonalidades das folhas verdejantes, outrora objeto do seu desinteresse mas que, a seguir, foram reconhecidas e admiradas. Não obstante, em outra manhã, não só admirava de passagem as folhas como já se servia de uma a outra bolota de resina ali gerada, cuja utilidade por ora desconhecia; lhe intuía, entretanto, do produto ser útil no futuro; semanas depois, condoeu-se de um ferimento no tronco da árvore, provocado pela retirada de um pedaço da casca protetora, dali retirada para qualquer fim.
Enfim, veio seu espírito render-se pleno à credulidade, dando inteira razão as excentricidades daquele príncipe, em razão da sua interação com as plantas. Em conseqüência os alongamentos junto a árvore tornaram-se naturalmente mais constantes, a exemplo dos monólogos.
Tal foi a evolução dos sentimentos de Filó: um dia vimo-lo desperto com a beleza da árvore; outros, além, seduzido e preocupado com o seu vigor; por fim, fascinado, reverenciava-a por inteira.
---- Bom dia, cara amiga! Dizia enfático.
Ocorrera certa feita de nosso caminhante amarrotado pela noite insone, mal sentiu as pernas o levarem até o jatobázeiro. Exausto parou ali tentando respirar. Arfou o peito com dificuldade em busca do precioso ar, todavia o aparelho respiratório não respondeu a crescente ansiedade, levando-o a espalmar as mãos no velho tronco. Abatido, cedeu finalmente à fadiga. Prostrou-lhe a cabeça. Tal ação impediu-o, no entanto, de notar sobre si o movimento da grandiosa fronde que, inerte pela calmaria da hora, começou, inusitadamente a agitar a galhada; refulgia acima, maravilhosas, as folhas no sol da manhã. Um fenômeno próprio, alheio às demais da região. Veio daí perceber minúsculas agulhadas urticantes pelo corpo, motivando-o endireitá-lo; coçou alguns pontos e já um calor assomava-lhe seus membros, causando-lhe o início de pânico. Pensou daí rumar pra casa mas as pernas não se garantiam, estranhamente frouxas, ante súbito e inexplicável mal estar a lhe abater qual raio fulminante. Na prostração em que se achava, forte acesso de vômito o acometeu. Repentino, o sofrido peito inflou causando inesperado movimento involuntário; aconteceu dali subir célere, num borbotão profuso e gosmento, a lhe encher a boca. Com muito esforço colaborou com a providência. À medida que vomitava a torrente de catarro grosso, amarelo esverdeado, não percebia, nosso amigo caminhante, a proporção de quase completar um quarto de litro daquele prejudicial escarrado.
Finalmente esgotado percebeu sensível melhora no fôlego, aquietando-se espantado com o que via: não imaginava tamanha podridão pudesse estar alojada e prejudicando seu organismo.
Mal recompusera voltou os olhos enojados para o vomitado. Deu seqüência à caminhada. Não sabia por quanto tempo estivera ali, parado. Sentia-se, porém, agora disposto e, embora temeroso, aspirou o ar matinal. Puxou-o devagar e parou; cauteloso continuou a aspiração e ainda tomado pelos efeitos anteriores da asfixia experimentou, então, aliviado, uma nova sensação do ar doravante penetrar farto, ocorrendo-lhe a bizarra idéia de que os pulmões haverem se distendido até o limite do umbigo!
Sorveu o ar uma, duas, três vezes, gozando o inusitado prazer. O peito renovado, qual um fole novo, aproveitava também agradecido a nova vida que por ele entrava.
Dali pra frente, após o fato insólito sob o jatobázeiro, Filózinho nunca mais padeceu a falta de ar. Hoje gaba-se de correr à exaustão, mantendo-se o fôlego supimpa!
A propósito do jatobázeiro, neste momento, em algum lugar do Vilarejo, o preto Bernardo despacha um de seus novos clientes. Trás nas mãos, o sábio preto velho, quatro frutos compridos, marrons, cujas carapaças luzidias sugerem armazenar algo muito valioso. Com sua voz pausada e mansa recomenda-o:
----- Óia muzanfio, ferve dois ou três caroço desse fruto no leite inté ele ingrossá e bebe, viu? Ele haverá de limpá o seu peito. Toma umas duas sumana qui é batata!... Ocê num terá mais de cramá cum esse bronquite brabo e cum essa farta de ar. Tá bão!
E óia, --- adverte-o finalmente --- se ocê sinti umas pontada e um calô pelo corpo, num preocupa não, é anssim memo!