Zé robótico
“O goleiro mirava-me como um alvo a ser combatido. Mas o que ele não imaginava é que para mim, ele era o alvo. Ele levaria uma bomba em seu corpo, quase atômica. Ele nem sentiria, tamanha seria força que eu estava prestes a depositar naquela bola de couro, marcada sinteticamente pela Nike. Olhei para o canto esquerdo, olhei para o direito, baixei a cabeça e fechei os olhos por um segundo. Tornei a abri-los, tomei distância, algo como quatro metros. Ou seria mais? Corri como num campo de batalha, acelerei não só o movimento do meu corpo como a batida do meu coração. Meu sistema nervoso pulsava na minha mente, eu teria que fazer o gol. Chutei. Olho para cima. Escuto o grito da torcida antecipadamente. A bola parecia não entrar, a curva se evidencia no ângulo, passa do ângulo – Meu Deus, será que eu vou errar? – a bola começa a descer, perde seu calibre ao encostar no travessão, toca na linha, sobe para o travessão novamente, toca na linha... acho que agora foi... foi... foi! É gol! A torcida delira. Eu me ajoelho e agradeço ao alguém divino por isso. Choro pelo título, choro por ser campeão.”
É com esse trecho que eu dou o ponta pé inicial na minha história. Eu sonho com esse trecho toda noite. Esperando que um dia ele se concretizasse. Agora já passam das seis da manhã, preciso levantar, me aprontar para ajudar minha mãe com a casa. Nossa rotina é religiosamente a mesma há anos. Desde as minhas 12 primaveras, aproximadamente. Minha mãe gosta do meu café. Coloco doses certas de açúcar, e o meu pão leva manteiga recaída, sem excesso. Organizo tudo em no máximo cinco minutos. Levo a primeira refeição do dia no quarto para minha mãe. Ela sorri quando me vê. Como uma face purpúrea, linda.
Minha mãe é uma mulher de 40 anos bem vividos. Começou desacreditar em Deus depois que Deus levou o meu pai. Minha mãe alegava que Deus não poderia ter feito isso com a gente, levando uma pessoa tão honesta e pura como meu pai. Ela não aceita até hoje. Passados sete anos. E sete anos é muito tempo. Em sete anos já se pode eleger vários políticos corruptos. Em sete anos já se pode casar, ou não. Ter filhos, ou não. Ganhar na loteria, ou não. Em sete anos, várias pessoas morrem, e outras várias nascem. Mas para minha mãe, sete anos é muito pouco tempo para esquecer a existência do meu pai. Então me pergunto o que meu pai fez em vida. Trabalhou dois ou mais terços da sua existência numa fábrica de cola quente. Ele era responsável por uma das máquinas. E eu devia ser responsável pelos meus estudos, era sempre o que ele me dizia. “Estuda, meu filho, estuda... pelamordedeus...”. Meu pai nunca falou, mas eu sabia que no fundo ele queria que eu não fosse como ele. Um funcionário de cola quente. Um funcionário que apanhava a cada esquina uma nova maneira de se fragmentar felicidade. Meu pai e seus ensinamentos. Nunca esqueci quando ele me levou a um parque temático. Falava das leis da física e colocava como exemplos a linearidade das máquinas do parque. Naquele dia, perguntei se ele era um robô da vida. Ele me fitou friamente, e não respondeu.
Agora voltando ao café da minha mãe, escuto o seu bom dia soar ao pé do meu ouvido. Deixo-a tomar café na cama enquanto agilizo as primeiras providências com a casa. Varro o piso. Coloco roupas para lavar. Enfim. Sete horas estou pronto para sair. Vou para o meu trabalho. Para a minha robótica. Das oito ao meio dia eu distribuo panfletos na avenida central da cidade. Que é enorme. Faturo uns 350 pila por mês. Volto para casa, almoço, lavo a louça e deixo quase todos os afazeres resolvidos, de modo que minha mãe não precise colocar muita mão na massa. Às duas horas começa o meu treino. Jogo futebol em uma escolinha aqui da cidade. O técnico anda gostando bastante do meu desempenho, estou com esperança de ser titular, na ponta esquerda, no jogo contra uma escolinha rival da cidade vizinha.
Só para sintonizar. Eu tenho 19 anos, me chamo Zé, sem nome composto. Apenas Zé. Tenho as pernas finas e corpo horrivelmente curvado. Nunca tive experiências sexuais, nunca fiz um gol, nunca beijei na boca. Nunca saí à noite. Nunca soube o que é vida noturna, balada. Nunca soube o que são drogas, lícitas ou ilícitas. Sou virgem em quase todos os sentidos da vida. Vivo para minha mãe e para essa escolinha. Para pagar meu treinamento, distribuo panfletos. Terminei meu ensino médio há dois anos - sempre tirei notas excelentes -, e morei minha vida inteira neste municio do interior gaúcho: Valdelino novo. A cidade vizinha que eu me referi chama-se Valdelino velho. Tudo muito original. Há décadas existiu um herói aqui na região, chamado Valdelino. Ele teve duas fases de conquistas: a nova e a velha. A distância geográfica e habitacional dessas conquistas se dá em seis quilômetros.
Voltando à escolinha, volto com a minha esperança de um dia ser titular. Mas a notícia dessa esperança não vem nessa tarde. Volto para casa às dezoito. Passo por dezenas de pessoas durante meu trajeto, algumas me olham. Outras, porém, mal sabem que eu existo. É a hora em que eu reflito sobre o mundo. É a hora em que eu me arrependo de tudo que eu fiz hoje. No entanto, eu sei que voltarei para casa eu farei a janta para minha mãe. Farei ainda mais alguns trabalhos domésticos. Vou me destruir fisicamente para depois dormir, sonhar com o meu gol do século e repetir todas as minhas atividades amanhã. Salvo raras exceções. A verdade é que não sinto uma exceção há meses... Não sinto vida há anos... Já passou da hora de fazer o gol.
Cansei de ser um Zé robótico.
Era o que eu pensava até matar minha mãe sufocada por um travesseiro de pena, a deixei junto de meu pai. Matei meu técnico a pauladas numa noite quente de outono. Eliminei mais algumas pessoas que me cansavam. Perdi todas as minhas virgindades sociais e humanas. Ganhei, absurdamente, vida. Fui detido pela lei, e desde então escrevo e leio na penitenciária estadual tudo aquilo que li e compus na morte, mas nunca havia realizado em vida.