Transcendência

Os sentimentos mais impróprios da vida se encontram num lugar sombrio do cérebro, onde nos escondemos para desejar aquilo que não é nosso, aquilo que não nos pode ser, aquilo pelo que lutamos e sabemos que não teremos. Girar e girar, viver num mundo mágico. Nesse pequeno depósito de más vontades, onde mesmo sem perceber, fazemos aquilo do que nos envergonhamos. Conversamos com aqueles que temos timidez para conversar na vida real, brincamos de algo que seria antiquado para muitos, nos apaixonamos por quem não nos é permitido apaixonar. Somos amados por quem amamos. Somos amados por quem não amamos. Somos luz e somos deus. Uma gota de água no deserto. Uma fagulha em meio à palha. Somos quem somos, e quem queremos ser. Realizamos aquilo que nos mais é restrito. Girar e girar, viver num mundo mágico. Um mundo em que tudo controlamos, todas as vontades são feitas, não há dor, não há tristeza. Não precisamos ficar reclusos em nossos pensamentos. Podemos pôr tudo pra fora, e der o que der, triunfamos. Quem sabe olhar para o céu e poder voar? Sim, porque não? Nadar na água e perceber que podemos andar sobre ela. Tocar lábio com lábio e perceber que estamos conectados, corpo com corpo, nada de separação, nada nos impede de tudo. Ser e não ser, brincar com as estrelas. Girar e girar, viver num mundo mágico.

Não faço jus ao meu nome. Não posso ser quem quero. Não posso viver o que pra mim é vida. Se eu morrer pra onde vou? Se existir céu, irei para lá? Afinal, nunca desafiei as leis de deus, segundo a Bíblia. Nunca andei fora da linha. Tudo o que fiz foi querer. Querer e não poder. Se existir céu, irei para lá? Terei eu, ao menos uma vez, na vida ou na morte, um desejo saciado? Não sei. Não sei de nada. Acreditar num deus vingativo, insano, que mata por prazer, se é que ele tem esse sentimento, que recebe sacrifícios, mas que recompensa quem lhe é fiel? Ou acreditar num deus que diz ser justo, que pune os infiéis e recompensa os seus, mas que deixa crianças morrer de fome num deserto sem esperanças, que afoga milhões de inocentes sob seus mares, que arrasa corpos com seus terríveis terremotos? Que tal não acreditar? Saber que é tudo natural, sendo deus justo ou salafrário, indiferente às crenças? Seria isso ser ateu? Acredito que não. Mas isso pouco me importa. O vento sopra forte. Minha roupa me impulsiona para frente. Meus braços abertos: sou livre, sou eu, sou deus. Chega de quartos escuros de pensamentos e nada mais, chega de vida monótona, manipulada pelo que é maior. O que é maior? Nada é maior. Tudo é igual. Sinto-me entorpecido. É difícil respirar. Dizem que a pressão atmosférica prejudica a respiração quando estamos em altitudes muito grandes, como é o caso. Não importa. Sou livre. Girar e girar, viver num mundo mágico. Não. Viver no mundo real. Viver no mundo real, não vegetar. Ter sentido. Pra que existo? Vou descobrir. Será? Sim. Por quê? Porque sei disso. Como? Eu sinto. Sim, eu sinto. É algo que está incrustado em mim. Não posso mais escapar disso. Devo ir até o fim. Não é mais prudente voltar? Esse é o pensamento de antes. Não sou mais como antes.

Agora está perto. Muito perto. Sinto isso agora tanto quanto senti antes. Sinto mais. Que sensação ruim. Faz muito frio aqui, realmente. Ele me avisou, mas eu não dei ouvido, queria que isso terminasse com estilo, sem roupas grandes e pesadas, que me prendem ao invés de libertar. Não. Não está mais frio. Sinto o calor voltar ao meu corpo. Um fogo que cresce quente dentro de mim, aflorando na pele, ardendo na alma. Sentir. Sentir o vento, o frio, o calor, a ardidez, a névoa, a altura. Girar e girar, viver num mundo real. As estrelas brilham lá em cima, mas eu quase não as posso ver. O dia já se aproxima, tenho de terminar isso. O tempo é curto. O tempo. Tempo. Prisão. O tempo é uma prisão. A maior de todas. Viver com o tempo é viver aprisionado. Chega de tempo. Agora é o momento. Antes foi o passado. Depois é o futuro. Futuro. O que tem no futuro? Chega de planejar. Chega de pensar. Chega disso. Não existe tempo, não existe rédeas, não existe algemas.

O que existe então?

Nada.

Sinto-me vazio. Viver por viver não é viver. Ser e ser? A névoa está se afastando. As estrelas estão frágeis. Posso ver o sol subindo atrás das colinas no horizonte. O tempo é curto. Estou preso novamente. Preso pelo tempo. Não! Não quero tempo! Dane-se o tempo! Vou esperar. Quem sabe algo mais aconteça. Não. Essa é a única saída. Vou ser livre. Sim, serei. Serei eu e serei deus. Deus, um ser, ou melhor, uma forma, ou ainda: algo. Deus, algo onipresente, onisciente, onipotente. Sim. Serei um deus. Eu saberei tudo, estarei em tudo, poderei tudo. Ah, sim, então vamos! Chega de esperar, controlarei o tempo. Serei o tempo. Serei deus, tudo, tempo, deus. Meu peito dói. É algo dentro dele. A dor vai passar. Vai, vai passar. Girar e girar, viver num mundo eterno. Eterno amor, felicidade, poder. Desejo que não é mais desejo, é realidade. Tudo posso, tudo faço. Sou eu, deus de mim, deus do tempo. Sou eu, ser livre, forma livre, algo livre. Não há canto remoto do cérebro para sentimentos impróprios. Não há cérebro. Mas há conhecimento. Onisciência. Sei tudo. Novamente. Meu peito dói. Dói muito. Há alguém atrás de mim. Um ser negro, um vulto. Não quero mais esses vultos. Que saiam do mundo! Ainda não. Só quando eu for deus. Há mais deles. Uma multidão. Uma horda. Estão lá embaixo, olhando, gritando, eles estão me ovacionando. Eles me querem. São meus súditos! Meus primeiros súditos. Não os farei esperar. Sou dono do tempo. Vou dar a eles o que eles querem. Darei a eles um deus. Sim, agora é o momento. Dou um passo à frente. Não sinto chão, nada de sustentação. Sou livre. Sem chão pra me deter. Pendi pra um lado, pra outro. Mas não, não caí. A névoa já se foi. Só há o vento. O vento que toca todo o meu corpo. Sou livre. Serei livre. Mais um passo...

Sim!

É isso!

Estou chegando! Sinto-me sonolento... está tudo muito rápido... meus súditos estão vindo até mim... estou caindo. Muitos gritos. Estão me ovacionando ainda! Calma, já estou indo... está quase lá... posso ver o chão se aproximando, e ele vai se abrir ao meu contato, vai se abrir e eu o atravessarei. Serei eu quem poderá tudo. Está perto. Como está perto. O fogo na minha pele voltou. Está demais! Chega a ser insuportável! Vai passar. Tudo vai passar. Uma nova vida me espera. Não uma vida, um tipo de ser que não pode ser imaginado. Serei a liberdade. Serei eu. Serei deus. Estou me colidindo com o chão... ele tem de abrir... abrir... tem de abrir...

Eu sou morte.

Sou nada.

Deus.