O ESTRANHO CANTEIRO DE ENOQUE

"A insanidade temporária de "X", exarcebada pela bebida, levava-o
a cometer desatinos dentro da própria casa.
Possuidor de personalidade cordata e simplória, X ainda imaginava que, com 
ela, pudesse resgatar seus erros mesmo à custa de absurdos."


--- Curuiz!*... Gritou dona Idalina. Suas mãos tensas, ladeavam o velho rosto espantado, a olhar estarrecida para o rapaz todo enlameado. Ajoelhado junto ao monturo, Enoque revirava, decepcionado, a terra, como se esta lhe houvesse negado algo por ele ansiosamente esperado. Vestes barreadas, lábios mordidos minavam sangue, certamente, feridos pela fria decepção. Ali estava ele, em meio a uma expressão piedosa de desânimo, traduzindo, aos olhos de quem o visse, inconsolável frustração. O grito da assustada senhora levou-me a ele, sendo o vizinho próximo.
--- Santo Deus, Enoque! Pude dizer ao chegar.

De onde morávamos, avistava-o perfeitamente; via-o em sua labuta diária, paciente, aguando incansável o monturo ali junto ao desgastado muro de taipa, amparado por verde heras e verdes musgos a lhe recobrir os poucos trechos a separar, precariamente, nossas pequenas propriedades.
 
Durante dias, por força das coincidências ou pela constância da sua movimentação, --- tais eram os incontáveis momentos de ele lá aparecer, --- mantive, naquelas atividades domésticas do rapaz, breves e desinteressados olhares.
Não lhe dava muita atenção. Julgava-o sumariamente de longe, resguardando-me não intrometer, por se tratar de vizinho de pouca prosa. Decerto, estaria ele a cultivar modesto canteirinho ou, até mesmo, um lazer que viesse, afinal,  ajudar na economia da cozinha. Nada, além disso.
Certa atividade que, por si mesma, não chamava atenção das pessoas porquanto comum à maioria das famílias da época.

Os dias se passaram. Num desses qualquer, vencido por súbita e inesperada curiosidade, aproximei-me cauteloso, a observar aquela tarefa de, mal a água ser absorvida pela terra fofa, pura, ser providenciada outra molhadela, seguida de outra e mais outra; estranha providência aquela nas atitudes de Enoque; por sinal, contrárias ao meu pequeno entendimento da arte de plantar. Sua crença em que a água pela água viesse a ser a verdadeira e única essência na criação e manutenção da vida consistia em erro fundamental. Contrariamente, é notório que algumas plantas, por si, perecerem sob a ação da água em demasia. Preveni cauteloso, o rapaz.
Preteriu-me, no entanto, o tímido conselho gratuito e a minha inoportuna atenção à sua atividade, cuidando agradar mais a gatinha pintada que insistia roçar-lhe, manhosa,  as pernas.
Ante a fria indiferença do rapaz julguei não ir além; tampouco quis arriscar conclusões que não fosse a presunção da hortaliça. A bem da verdade, nem possuía outras.
Ultimamente tenho observado singular mudança com o misterioso monturo: menos água e mais observações.  Já se passaram pouco mais de semana e, Enoque,  vez por outra, remexe-o superficialmente em busca de algo.
Tenho cá, por mim, que grelos de folhagens ou de frutos comestíveis ameaçam a romper do solo, por lá.

Bem, duas semanas de intensos cuidados e meticulosas observações transcorreram; no misterioso canteiro, nada por lá germinou. Contudo, se os resultados não agradaram ao agente executor, muito menos àqueles curiosos, ávidos, também, a testemunharem agora a inédita e pressuposta germinação. Eis, então, a surgirem comentários brotados em meio à vizinhança: "Sete dias são suficientes para a maioria das sementes nascer, por que não, essas?". Conjeturou alguém. Outro, em forma de galhofa, arriscou: "Deve ser ovo de tartaruga pra demorar tanto!" Na verdade, a atividade do pobre rapaz, antes indiferente aos olhos da vizinhança, começava atrair a atenção das pessoas. Assim, novas especulações acerca da provável natureza da futura planta, objeto de tais cuidados, são também comentadas: "Eu julgo que virá uma árvore exótica, de natureza oriental, dessas de deitar perfume pra todo canto... árvores perfumosas demoram mesmo a nascer, da mesma forma demora muito a florir!" Outro dia, ouvi algo juramentado tratar-se ali do plantio de rara variedade de árvore tropical oriunda do Pará, cujos frutos, na forma de diminutos cocos, encantam o paladar das pessoas --- "Sublime! --- expressava o autor da extravagante proposta, enfeixando os dedos sobre os lábios, continuou: ademais, seu imediato efeito afrodisíaco é ainda um só de seus muitos e decantados poderes!" Exaltava.
Por mim, não faço mais idéia do que seja; não me toca nada de plantação, muito menos especulações  desses comentários por aí; toca-me, apenas, o desvelo do vizinho com o resultado de suas ações, quando essas estão praticamente à  minha porta.

Ontem, ocorreu um fato deveras inédito por aqui. Dos vários cachorros que rondam livres por nossos quintais, um  deles atreveu-se a chegar perto do misterioso canteiro.  Farejou-o longamente, ameaçando, em seguida, mijar no local. O guardião zeloso,  que se encontrava na cozinha, logo percebeu a intenção do intruso e saiu possesso, vassoura em punho, a perseguir o pobre cão rua afora. Aos gritos, --- ouvia-os de longe ---, dizia coisas ininteligíveis. Após bons pares de minutos, retornou, suado e esbaforido, estatelando-se numa cadeira.  Atenta, a gatinha o procurou ronronando carinhosamente junto de suas pernas cansadas, tal o costume.

Alertado, pois, pelo grito de Da. Idalina, corri ao seu encontro, deparando-me, surpreso, com aquela trágica cena. No meio de um lamaçal, o rapaz soluçava, agora em prantos, agarrado a duas caveiras de supostos  animais domésticos, putrefatas, infestadas ainda por vermes a lhes varar os espaços internos; em breves intervalos, levava as duas infelizes peças ternamente ao peito repetindo gestos de extremada compunção. Num canto da cova, em meio ao barro, podia-se ver inúmeros pedacinhos de couro apodrecidos junto a ossinhos desmantelados.
Naquela noite, a gatinha pintada miou chorosa como nunca por sobre os telhados das humildes casinhas da  Maranhão.
Entendera, finalmente, que seus sonhos não "brotariam" jamais.


curuiz* (expressão usada pelo povo simples do pequeno recanto do Toquinho, bairro de Campinas,Goiânia, nos idos de 1960) = cruzes!