Por Você

A torrente veio como chama em uma trilha de combustível moral. Veio de um lugar onde os olhos jamais encontraram com a energia da luz, e de um lugar onde nenhum som jamais foi ouvido, embora sejam emitidos constantemente. Choveu sangue, um sangue sem vida, que, não obstante sua frieza e óbvia dor visual, semeou a vida em si. O que se tingiu de vermelho estremeceu como uma visão incerta, e então voltou a ser. Tão obscuro que o que era tangível tornou-se rapidamente pardo, confuso, ao mesmo tempo que não deixava nenhuma dúvida.

Senti meu cabelo molhado, meu corpo frio tornou-se gélido, minha palidez tornou-se alva demais para ser real. Não havia vento algum, e assim mesmo eu me deslocava sem passos para frente. Não podia seguir, não podia voltar, e não podia escolher ficar. Era tarde demais. Minhas mãos descamaram até perder a vida, e meu toque deixou de existir, pois não era mais meu. Meus olhos perderam a cor, enegreceram, pois as visões não eram mais necessárias. Minha boca se fechou, cicatrizou, e os tons arroxeados de meus lábios jamais voltaram a brilhar, pois não havia mais nada a se dizer.

Enormes asas de luz se abriram em minhas costas, ainda que eu fosse incapaz de as controlar. Tornei-me energia com a torrente, tornei-me o sangue que fluía para a direção inversa de onde o vento não soprava. Mas era muito pior do que isso. Toda a sensação de gloriosa derrota emergia lentamente diante do poder da torrente em si. E enquanto me deliciava em ser, eu simplesmente não era. Sem olhos pra ver, sem ouvidos pra ouvir, sem boca pra contestar, não pude perceber que eu era o foco de irrealidade.

Bebi meu próprio corpo agora em sangue, e senti o amargo sabor da ruptura do consciente. Tinha ido muito além. Além da sanidade. Um passo além. As escolhas mostraram-se impertinentes e fugidias, incapazes de fixar uma vereda aceitável. E então, o vento que não existia me levou, e agora sou a inexistência em si.

As chamas queimaram meu corpo, e a luz da morte se desfez em lágrimas noturnas. Não havia mais nada. A torrente é, e eu não sou mais. Sou parte de uma colisão entre mundos, e agora, sou também o que os mantém colidindo. Sou eu o passo além da sanidade, e a chuva luminosa de sangue e dor. E só quando entendi o que acontecia com o que me era caro e real que pude perceber que não estava sozinho. Havia mais alguém lá, na chuva, na torrente, sendo queimada pela luz. Sofrendo, chorando, se tornando, e ao mesmo tempo, como eu, não querendo fugir. Era tarde demais pra ela também.

Nossos corpos se fundiram, e a torrente ficou mais forte. Incapazes. Era algo muito maior. O que se tingiu de vermelho deixou a incerteza de seu ser, e então simplesmente regressou ao marco zero. Compreendi porque a chuva de sangue não me parecia tétrica, e porque o mundo morrendo ao meu redor não me assustava.

Eu queria que ele morresse. A morte é o passo para a nova vida. Eu morri. Ela morreu. E agora, somos novamente.

Fim

AG Hilde
Enviado por AG Hilde em 28/04/2009
Código do texto: T1564741
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