A tourada
A tourada
Percebeu que o inverno se aproximava quando as folhas de cartas, telegramas e postais cobriram o chão do quarto, caídas do alto das mãos de um carteiro. Intensas rajadas de angústias frias, tempestades de terror por dentro e uma estranha sensação de contentamento. Dava início a um cenário denso, tenso, por toda miscelânea de coisas que sentia. “O inverno, o inferno, está voltando”.- pensou.
Na primavera dos seus sonhos todas as cores se apresentaram sorridentes. Foi gracejada com flores perfumadas, tomada por beijos estrelados sob noites de formosa lua e pelas manhãs, o seu sol vinha-lhe abraçar o corpo para espantar qualquer brisa fria que a tivesse feito arrepiar a pele. Jamais sentiu tanta felicidade. Cria que o paraíso era assim, ali.
No advento do verão, seu sol a fez arder de paixão. Quentes brisas a envolvia pelas manhãs e noites. Começaram a transpirar intensos desejos, loucuras sodómicas, na invenção de um novo Kama Sutra. Era o início das tempestades da estação. Sua personalidade dócil, acentuada por uma criação puritana, apesar de amar perdidamente a força e a majestade do seu astro, vivia em constante choque com a nuvem carregada e selvagem de estrogênios e lascívia, que ele trazia. Mas no fim, quase sempre, se rendia. Bastava só que ele trovejasse a sua urgência que ela logo aspergia a sua perdida puberdade a cama, sua “Plaza Del Toro”, onde toreava, sem força ou honra, contra um animal que lhe vencia sempre e sob aplausos (dos amigos). “O macho”.
No outono, ele não era mais o seu sol, mas um pesadelo cigano que ia e vinha à revelia. Ele era obsessivo e esse sentimento a incomodava, no entanto, era incapaz de reagir. Perguntava-se o por quê, mas não obtinha de si mesma a resposta. Contudo, só a remota possibilidade de não vê-lo, por um tempinho que fosse, dava-lhe novo fôlego. Assim, sentiu-se agraciada, de certa forma, quando mais uma vez ele sumiu. Deixando-a prisioneira sem defesa, voz ou direitos, por muitas semanas, em seu inóspito quartinho. Durante todo esse tempo teve a mente torturada com mensagens sádicas de regresso, enquanto definhava em desespero, medo e solidão. Regava em si a baixa-estima e depreciava-se por lhe faltar coragem de agir em seu próprio favor. Desenvolveu, em sua clausura, seu ópio mental, na tentativa de transpor, para outro e qualquer lugar, sua alma. Entoando uma antiga canção francesa, como se fosse um mantra, por várias horas. “Ne me quitte pás” era entoada e transcrita com exímia caligrafia em papéis perfumados a Channel, por pelo menos, algumas centenas de vezes. Como uma súplica doentia de uma mente confusa, ocultando em seu canto as intenções nefastas do seu coração.
Pressentiu a sua volta quando o frio atacou-lhe os ossos. Ainda assim, prosseguiu no que ruminava há tempos. E em gestos premeditados, arrumou cuidadosamente os cabelos, pintou a boca de carmesim e os olhos de preto. Pôs seu melhor vestido, um de saia godê, encarnado, com um suntuoso decote as costas e perfumou a nuca com o Channel. Como num ritual, escreveu num papelzinho, com as letras caprichosas da prática das transcrições constantes do seu lamento francês, algo que deixou sob o frasco do perfume. Também preparou algo para beber, o qual tragou num só gole. Ao som das castanholas do tempo, pôs-se ao centro da “Plaza” empunhando em uma das mãos a muleta, igualmente vermelha, de torear; do jeitinho como o tal a recomendara.
Ventos, demasiadamente, fortes açoitaram todo o lugar, levantando as folhas do chão, desalinhando os cabelos da moça, metodicamente, preparados para a ocasião. E derrubando o frasco de perfume sobre o bilhetinho, manchando-o com o aroma que tantas vezes marcou aquelas touradas. O vendaval anunciava a presença dele. Tomou o derradeiro gole, fez pose de toureira e danou a girar, ensandecida, sobre a cama. A primeira investida caiu desmontada sem os sentidos. Ele não se fez de rogado. Arrancou, à força, o vestido encarnado, numa urgência e necessidade, tal qual um animal. Borrou-a com o próprio batom com beijos e carícias jamais vistas. Não fez conta da sua indiferença, deixando-o fazer todo o trabalho, sem ao menos resistir a sua violência. Lambuzou-se. E mais uma vez, estatelado sobre a “Plaza”, sentiu-se o rei, o homem, o macho! Julgou que ela dormia quando se levantou a reclamar a desordem do quarto, a janela aberta e o frasco de perfume caro desperdiçando-se sobre o móvel. Deu-se conta do bilhete manchado sob a penteadeira. Leu. Vestiu-se as presas sumindo mais uma vez.
Ela foi encontrada, dias depois, dormindo, com um ar de “La Gioconda” no rosto, abandonada no mesmo lugar.
Adriana Kairos