Completamente nu ou clube das canibais ou o maior panfletário de todos os tempos

para Carlos Cruz

A mãe passou pela sala e, olhando para a capa do disco do King Crimson de 1969 – aquela clássica com um rosto urrando e olhos arregalados de pavor, pintada em cor-de-carne –, disse: “– Que coisa horrível”. Então, virando a capa ao contrário, pondo-a sobre a pick-up, a mãe completou: “– Isso traz doença”. Ele havia explicado para ela, algumas horas antes, quem era o homem de barba e boina na camisa vermelha. E ela compreendeu finalmente que existiram mais homens bons além de Jesus Cristo. Depois de dar folhas de boldo a ele, se foi ela para sua casa, deixando-o só.

O filho estava com dor de barriga, diarréia e febre branda. Ele nascera no mesmo ano que o disco do King Crimsom. Portanto, estando então o mundo no ano de 2009... façam as contas. Quando não se é mais um jovem rapaz parece que os efeitos do álcool são mais devastadores. Ele sabia que não iria morrer, mas pensou que fraqueza semelhante deve acometer os que estão na iminência da morte.

Com boldo amassado em copo d’água, feijão com batata e carne batidos no liquidificador, MTV e solidão ele esperou refazer-se. Numa noite daquelas assistiu a três minutos de um DVD pornô e a imaginação completou as lacunas até dar à luz espermatozóides saudáveis – isso ainda estando ele doente. Os dias viriam e seria melhor que ele não assistisse mais a vídeos pornô – nem três minutos. Isto se pretendesse uma boa recuperação. Tudo bem que seu corpo já fosse um barril de dinamite, independentemente de novas imagens vindas de fora da sua cabeça. Pornografia, contudo, é uma espécie de isqueiro que acende o pavio. E se é pra explodir, que seja com o corpo saudável.

Passado um mês sem álcool, saudável agora, os pensamentos carnais voltaram com mais força. Foi – e essa atitude e o resultado disso o espantaria no futuro – a uma academia à procura de uma musculação acompanhada. Nunca havia feito musculação de forma alguma. Pensou: “– Talvez exigindo mais do meu corpo eu dê mais paz ao meu cérebro”. Talvez o pobre maduro rapaz estivesse enganado.

Um ano se passou. Estávamos agora em 2010. Seus músculos pareciam esculpidos em peroba rígida. Porém, toda a sua força física adquirida não fazia dele um macho alfa – desejo oculto de todos os machos existentes na natureza, até mesmo no mundo vegetal. Músculos não compram poder. Seu surpeendentemente jovial rosto também não comprava poder. Sua inteligência sensível às questões mais profundas do ser, ela não comprava poder. Só dinheiro compra poder. Então ele precisava de mais dinheiro para ter mais poder. Um pouquinho mais de poder. Ter mais poder significa suar menos para sobreviver e ter de fazer menos esforço para alcançar sucesso com as fêmeas. É um pensamento machista, nojento, menor... como preferirem classificar. Mas não é algo difícil de se constatar, com muita tristeza, se olharmos as pessoas cuidadosamente, tentando entender o que elas planejam pras suas vidas. E não era só o poder no sentido mais amplo – que é o sexual e político do macho alfa –, mas também as pequenas sensações de poder causadas pela satisfação dos artificiosos desejos de consumo insuflados pela TV. Ainda que ele não precisasse de um carro novinho de uma marca respeitada, ele precisava comprar coisas, coisas baratas. A grande trave era a realidade de que tudo era muito caro para as suas condições monetárias. O poder se tornou algo muito relativo. “Podemos” pensar, por exemplo, no “poder” pagar as contas.

Foi aí que um dia leu um anúncio no jornal – ele lia jornais de papel, pois ainda guardava um sentimento de nostalgia intelectual. (Naquela época não acreditariam que os jornais de papel pudessem existir até hoje) O anúncio oferecia vagas para dançarino de um desses clubes das mulheres, esse tipo de coisa. Eu particularmente achei que o cara já pudesse estar ficando maluco – ele foi até lá pedir uma vaga. No teste fez mais gestos do que dança. De alguma forma a gerente gostou daquilo que via: um homem mais magro que os normalmente usados para o trabalho. Mas viu no rosto um tanto triste do rapaz algum atrativo. Talvez as clientes mais inteligentes pudessem gostar daquilo. Um homem de rosto triste no meio daquele circo – falamos aqui de tristeza verdadeira.

O ano era 2015. Chegara o dia de sua centésima apresentação no clube. Para aquela noite escolhera uma trilha de tango com bases eletrônicas. Lindas mulheres carentes e consumidoras da mais nova droga anti-depressiva do mercado, feita à base de maconha, capim melado do Pantanal brasileiro e caramujos indianos, lotavam a casa. Com a música num volume ensurdecedor ele dançava – ou melhor, fazia poses. As belas e tristes mulheres, num círculo ao redor do homem de meia idade que aparentava ter a metade dos anos que tinha, estavam em êxtase.

Ele, o belo rapaz de rosto triste, tirou a camisa – algumas preferiam ver o começo da “dança”, quando ele ainda estava vestido, impecavelmente, como de costume. Era uma forma de mergulhar mais fácil em seus olhos negros. Tristes. Mas foi extasiante, sim, para a maioria delas aquela nudez parcial, que fazia parte do velho jogo do streep-tease. Depois foi a calça preta. Depois a cueca branca. E importante: neste dia, pela primeira vez no palco tivera uma ereção completa com esta atitude rotineira de despir-se. Completamente nu, no centro daquele furacão de mini-saias, seios querendo saltar dos decotes, quilos de maquiagem, hormônios em turbilha, estava ele. Pensou: “– O que mais posso fazer para que este momento, de fato, valha a pena?” Engano meu. Sem querer coloquei palavras na boca do homem. Não é que ele estivesse pensando aquilo naquele instante. Na verdade ele já tinha um plano, e, para executá-lo, houvera colocado nas pontas dos dedos, dedais metálicos pontiagudos cortantes. Poderiam parecer adornos, mas eram lâminas afiadíssimas. Então, ali, nu, com o pau duro, fez quatro breves cortes no calcanhar, retirando um pequeno pedaço de pele ensangüentada, que entregou na mão de uma das mulheres. Ela, completamente dentro de si, beijou agradecida a tira de pele do rapaz. Ele sabia o que elas queriam. E é bom que se esclareça aqui que no ano de 2015 havia uma grande campanha mundial contra o consumo de carne. As jovens senhoras e senhoritas ali eram, em grande parte, pertencentes a um grupo de pessoas que resistiam à onda de vegetarianismo. Depois da pele do calcanhar, ele cotou um grande pedaço da panturrilha, que jogou como quem joga uma bola de tênis a um amigo, ou, naquele caso, uma flor a uma fã. Mas não era flor: era carne humana, viva em sangue. Então estava tudo pronto para o grande ápice do espetáculo. Ele fez cortes rotulares na base da canela, logo acima dos pés. Então puxou sua pele para cima, e como quem tirasse uma roupa de mergulhador, foi arrancando o seu couro. Jogou sua pele, mais humana do que jamais tivera sido, à platéia enlouquecida e mais humana do que jamais se houvera visto. Estava agora mais nu do que jamais ousara estar. Seus músculos nus e sangrando era o que se exibia. Porém não era mais um corpo inteiro. Longe disso: havia perdido o órgão mais precioso de um ser humano, que é a pele. Na seqüência, agarrou vigorosamente seu pênis ereto, que ainda estava ali, com suas unhas de aço, e o arrancou lentamente – o sangue jorrava. Ele ainda teve forças para atirá-lo às mulheres, que lutaram, famintas, pelo nobre pedaço de carne. No palco circular, sangrou até a morte. Sentia uma fraqueza parecida com uma ressaca – ele poderia estar queimando em carne viva, mas sua sensação era de uma febre branda apenas. Jazia morto então. As canibais terminaram o banquete, até o fim.

No camarim ele deixou escrito no imenso espelho – não com batom, mas com essas canetas especiais para superfícies lisas – a seguinte mensagem: “– Dou meu corpo para que este ato máximo seja sabido por todos, e peço que ensinem sobre o Comunismo nas escolas. Quero ser lembrado como um comunista que deu, no seu último dia de vida, sua grande contribuição à Revolução. Quanto ao meu corpo? Procurem-no entre as mulheres. Nasci de uma mulher e meu corpo sempre foi delas”. Fim. Possíveis começos.