No terreiro
 
Uma amiga de Dona Menô a convidou para uma sessão espírita. Ela achou que Menô precisava de um apoio espiritual. Algumas coisas estavam tão pesadas que só um pai de santo poderia aliviar aquela barra:
 
- “Só pode ser macumba, querida! Você tem que neutralizar isso com a mesma moeda”, insistia a amiga.
 
- “Caraca! Eu nunca fui num centro de espiritismo. Isso não vai dar certo... Nem sei como me comportar. O santo vai me expurgar?”, perguntava Menô.
 
Sua amiga estava irredutível:
 
- “Não precisa fazer nada, dizer nada. A entidade vai saber o que dizer e do que você precisa. E não se esqueça da oferenda...”.
 
- “Que oferenda?!”.
 
- “Uma garrafa de 51...”.
 
- “Ah... O espírito escolhe a marca, é?...”.
 
- “Não, Menô! Pode ser qualquer uma, mas tem que ser cachaça”.
 
- “Vem cá, se é pra beber, não dá pra gente ir ao barzinho da esquina e chorar as mágoas?”.
 
- “É um simbolismo, Menô! É assim que a coisa rola. São espíritos da África. Eles gostam de aguardente”.
 
- “Tudo bem. Tudo legal... Eu concordo. Marca o dia e eu vou”.
 
Menô quis tirar uma chinfra e desenterrou uma bata branca dos tempos de hippie, linda. Só que quando ela lá chegou no tal centro espírita, não viu ninguém fantasiado, mas apenas pessoas simples, muito compenetradas nas coisas do outro mundo. Uma parede amarela, quase mostarda, poucos móveis (basicamente cadeiras), uma janela com uma cortina branca, pessoas ao redor de um homem mulato, magro, que fumava um cachimbo, sentado num banquinho baixo.
 
A amiga disse:
 
- “Põe a garrafa aos pés do preto velho, beija sua mão e senta à sua frente”.
 
Menô não se sentia à vontade. Não conseguia relaxar e ser natural, mas tentou ao máximo cumprir as recomendações. Dirigiu-se ao homem da maneira mais espontânea possível (para ela...):
 
- “Oi, colega. Tudo em cima?”.
 
O homem a olhou bem profundamente, muito sério, e perguntou:
 
- “A menina veio aqui para me conhecer?”.
 
Naquele momento ele soltou um dos sorrisos mais doces que ela já vira . Por algum motivo Menô começou a desconfiar que ele devia realmente estar abrigando algum espírito de luz, de outra dimensão. Sendo assim, respeitou o momento:
 
- “Eu não sei por que vim, mas queria te conhecer, sim”.
 
- “Tá precisada de alguma coisa?”, ele logo falou, tentando tomar um gole.
 
- “Eu?! Ah, cara, se eu tivesse feito uma lista antes, poderia te dizer, mas, assim no supetão, eu me perco, poxa!”, retrucou Menô, retirando a garrafa da mão dele, que olhava curioso para a mesma.
 
- “Mas quando alguém vem aqui é porque tá sofrendo ou quer saber de alguma coisa, um parente morto, até mesmo fazer um trabalho contra alguém...”. A entidade começava a ficar meio pau da vida. Só que ela estava mais pau da vida ainda:
 
- “Que isso, cara?! Você faz mal a alguém? A gente já tem tanto o que fazer que é perda de tempo fazer mal a outra pessoa!”. 
 
Menô deixou sua frente desprotegida em prol de seus ideais. Ela não estava enfrentando um ser normal, mas um espírito. Dava no mesmo, pois os piores espíritos ela enfrentava na real...
 
- “Quem faz mal é a pessoa, não eu. Se bem que o mal volta pra ela na mesma intensidade”, ele justificava, já encolhendo os dedos, pois a essa hora a garrafa tinha sumido.
 
- “Eu não quero nada e nem vim aqui pra pedir nada!", ela retrucou quem nem deputada baiana.
 
Dona Menô não tinha nenhum objetivo, mas queria saber qual era a do espírito. Daí, começou a fazer "sala":
 
- "Você gosta de 51? Eu só encontrei Pitú...”.
 
A entidade estava diante de alguém que não entendia do cerimonial, portanto, fez-se de rogada. Deu uma baforada e jogou a fumaça em sua direção, dizendo:
 
- “Suncê é espevitada... Num tem medo do preto velho?...”.
 
- “Não... To me sentindo zen... Tenho medo mesmo é do meu saldo no Bradesco...”, disse ela, tentando guardar seu maço de cigarro, que a qualquer momento iria sair da bolsa.
 
- “Ah, tendi... Tu tá sem dinheiro e quer que eu banque tuas dívidas”, provocou ele.
 
Menô se revoltou. Ele podia ser um espírito, um padre ou um guru da Índia, mas ela era ela mesma, então disse:
 
- “Aqui, vou te dar uma idéia: eu acho que a gente tem coisa mais legal pra dialogar né? Tem limão aí?...”.
 
- “Eu quero que olhe bem no fundo dos meus olhos...”, ordenou o velho.
 
Menô sentiu medo, mas olhou desconsertada. De repente algo a levantou. Ela ficou vermelha, começou a suar, sentindo um calor insuportável. Abanou o rosto, sacudiu o corpo, abriu os braços e gritou:
 
- “UFF!!!”.
 
Ele se assustou. Não imaginava que alguém podia naquele momento ter um treco maior do que o que os céus determinavam. Quis saber o que acontecia:
 
- “O cavalo tá recebendo?...”.
 
- “Que cavalo???”, perguntou ela, olhando para os lados, apavorada.
 
O preto velho quis testar a maluca, perguntando:
 
- “Tu sentiu alguma coisa estranha?”.
 
Menô se justificou:
 
- “Desculpe. Foi maus. São os meus fogachos da menopausa. Às vezes eu fico com o diabo no corpo, se bem que daqui a pouco passa... Mas... cadê o cavalo?”.
 
A entidade tinha que ter paciência com ela. Ela não debochava, somente não conhecia e não se interessava por nada que tivesse a ver com religião, essas coisas inventadas pelos seres humanos. Era como na bíblia: “Eu te perdoo porque não sabes o que fazes...”.
 
Sem mais nem menos Menô se acalmou e sentiu uma enorme necessidade de conversar com ele. Naquele instante era ela quem comandava a sessão. "Algo" se apoderou de suas palavras e, então, começou o bate-bola com a dúvida dela:
 
- “Como é o mundo de lá?”.
 
- “Que mundo?", disfarçou a entidade, agora achando que jamais existiu um pinga naquela sala.
 
- “Dos espíritos. Como é lá do outro lado?”. Menô devaneava legal, enquanto tomava todas.
 
- “Nós estamos aqui ao lado de vocês. Somos tristes quando se sentem tristes e somos felizes quando são felizes. Não estamos em outro mundo, mas aqui e agora, comandados por uma força maior, uma força inexplicável, até por nós mesmos, que chamamos universalmente de DEUS. A nossa dimensão é a dimensão que vocês dão a nós”.
 
Ela estancou, que nem Chico Buarque na música Construção ("Parei na contra-mão atrapalhando o tráfego"). E continuou, agora totalmente rendida:
 
- “Eu queria poder ter contato com esse mundo...”.
 
- “Feche os olhos e pense. Diga pra mim o que vem em sua cabeça”.
 
Assim Menô começou a concentração. Não obstante, ela jamais se concentraria como era de costume. Teve que dar uma parada nos pensamentos, mas estava parada mesmo era naquele momento. Ela organizou aa energias. Foi ela que trouxe as energias, mesmo sem querer, aquilo que dizem serem fluidos. O espírito sabia disso e respeitou. Caso fosse uma personalidade doente, não agiria de tal forma. Era chegada a hora...
 
Menô fez a vez. Ela estava totalmente à vontade, até porque naquele ambiente ela representava, como uma simples serva, alguém que sentia nosso Deus. ELE era presente e era o Rei. Ninguém era maior que ELE!
 
E bate-bola de novo:
 
- “Eu vejo uma criança doente, num leito de hospital. Muitas lágrimas e muito sofrimento”.
 
- “Conhece esta criança?”.
 
- “Não, mas ela certamente existe neste momento”.
 
- “Quer rezar por ela?”.
 
- “Se eu pensei nela agora, já estou de certa forma rezando. Se quer me ajudar, então, ajude-a”.
 
- “É raro receber alguém que peça por alguém que não conhece...”.
 
- “Já te disse que não vim pedir chongas, mermão. A minha amiga - aquela que tá lá rodopiando que nem uma pomba-gira - é que me obrigou a vir aqui”.
 
- “Ela é uma pomba-gira...”.
 
- “Que seja...”.
 
- “Acho que não temos muito mais a conversar, não é?".
 
- “Também acho. A fila lá fora tá enorme! Pelo jeito, você vai ter um plantão daqueles... Mas eu queria fazer um pedido especial, caso eu não tenha ultrapassado minha quota...”.
 
- “Pode falar”.
 
- “Me ajuda a continuar SORRINDO".
 
- “Moça, se você me fez dar risada no meio de tantos dramas e de tantos ódios e desavenças, não precisa de minha ajuda, só da sua força divina”.
 
- “Frustrante... Pensei que eu ia encontrar um SHOW PIROTÉCNICO, com muitas saias rendadas e rodadas; que eu ia sair daqui com uma nova visão do mundo; que você, que é um espírito de luz, ia solucionar todos os meus problemas e eu ia ter mil paus a mais na conta amanhã...”.
 
- “Não resolvo nada. Quem resolve é você, se quiser isso intensamente. Mas, já que está aqui fazendo o coreto, eu vou te cobrar uma coisa...”.
 
- “Já sabia... Lá vem essa obrigação de botar farofa e galinha morta numa encruzilhada... To fora! Galinha, eu como frita, à passarinha e com um boa cerva! Nada de colocar comida fora. Bicho, tem gente morrendo de fome, saca?”.
 
- “Não, moça. Você não precisa fazer nem mais um trabalho, além dos que você faz todo dia. Só me traga café da próxima vez, que eu não bebo.
 
Menô não se fez de rogada:
 
-“Tudo bem, eu acabei com a garrafa mesmo...".
 
Leila Marinho Lage
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