R.

R. entrou na livraria e correu para a pirâmide de lançamentos com passos rápidos e atrapalhados. As mãos ávidas de um viciado em livros à procura do maior romance já escrito neste século, deveria estar lá, esperando por R.

O momento de tensão durou mais o que o suficiente para fazê-lo suar.

Quando chegou à pirâmide R. estava tão nervoso que mal conseguia respirar, retirou a bombinha de asma do bolso e apertou duas vezes. Os lábios secos, implorando por manteiga de cacau, murmuraram para ele. “Calma, calma. Tudo vai ficar bem se você tiver esse livro, todo o sentido da existência humana está em suas páginas.”

R. rodou a pirâmide de livros, fixou os olhos, com certo desespero, e não encontrou “Brumas e Névoas” , o coração palpitou forte e ritmado. O som ambiente da loja ficou tão forte que ecoou até o cérebro.

R. cutucou uma menina loira com o crachá de vendedora. “Estou procurando um livro” disse, trêmulo.

Ela parou o que estava fazendo. Empilhar livros de auto-ajuda ao lado dos lançamentos: apesar de tudo , auto-ajuda sempre vendia mais, e ela não entendia como as pessoas deixavam que outras dessem conselhos sem estarem nas vidas dos leitores. Para ela, aliás, todo esse alvoroço sobre livros e cultura era uma bobagem muito grande, já que qualquer coisa poderia ser encontrada na Internet. Olhou para o R. e perguntou desinteressada:

“Qual livro é ?”

A resposta foi um papelzinho amarrotado e com um rabisco muito feio.

“Brumas e névoas” os lábios infantis da menina não deveriam ter mais que dezessete anos. Mas o senhor R. ficou pensando em quanta sujeira já tinha passado por ali. Essa juventude. Em pouco temo estariam todas grávidas.

“Com licença, vou procurar no arquivo.” Disse ela, indo até um computador no fim do corredor, ao lado dele estavam aqueles livro infantis com capas coloridas demais, para R...

O senhor R., como um ídolo de pedra, continuava ao lado da pirâmide, o cérebro golpeado pela música barulhenta da loja, não conseguia parar de pensar naqueles lábios sujos da vendedora. Sentiu vergonha. Ela tinha idade para ser sua filha. Ou sua Lolita. Reparou nos quadris arredondados mas não largos, no cabelo sedoso, e nos olhos conspurcados pela luxúria ,franzindo o cenho percebeu a situação em que se encontrava e parou. Voltou os olhos para um ponto inexistente e batucou em cima de um livro de capa azul e letras douradas, hoje em dia, tudo era motivo para cores e barulhos.

Quando a vendedora voltou o senhor R. folheava um livro de capa vermelha. Realmente odiava essa nova tendência de auto-ajuda. E odiava muita mais os livros de mistérios que davam continuidade para livros com o título “desvendando tal coisa.” Ou “por trás dos mistérios de não-sei-quem”. A vendedora parou. Deu um sorrisinho sem-graça e disse “Não temos esse livro no arquivo, senhor, mas se quiser reservá-lo posso procurar no sistema da loja. Apesar de não ter encontrado nenhum registro sobre ele.”

“Não, obrigado.” Respondeu R. Para ele, uma livraria que não tivesse “Brumas e névoas” não era uma livraria de respeito. Assim como as três últimas pelas quais tinha passado, todas elas com garotas bonitas, música barulhenta, e pouco estoque.

Partiu para a próxima.

A mesma cena se repetiu. Música eletrônica, suor, menina , sedução. Nada de livro.

Foi na terceira livraria que o senhor R. hesitou. A pilha de lançamentos da semana passada estava sendo retirada para dar lugar aos novos livros daquela semana. O senhor R. cutucou uma menina que não sorria muito, mostrou-lhe o papel com o nome do livro e seu autor, ela foi até um computador no andar de cima, ao lado do cyber-café,

e pesquisou.

Voltou com o olhar igual ao que tinha ido.

Não existia tal livro. E o autor não estava registrado em nenhuma editora.

“O senhor tem certeza de que os nomes estão certos?” perguntou ela. “O senhor tem certeza de que este é o nome do autor? Uma letra errada e nosso sistema não encontra o livro.”

R. virou a boina para trás, impedindo que caísse em seu rosto suado, depois de alguns segundos retirou-a e dobrou na mão esquerda –apertava-a com tanta raiva que a aba rachara. Lá no fundo sabia o que estava acontecendo: aquelas pessoas estavam impedindo-o de conseguir o maior livro de todos os tempos. Não, não queriam que a sabedoria acumulada dos tempos remotos caísse em suas mãos! Era uma conspiração, todos estavam unidos para mantê-lo na ignorância cosmopolita, na massa de vermes que eram aqueles que não leram “Brumas e Névoa”, desde as meninas sujas, até os vendedores gordos. Será que o Estado os manipulava? A Igreja, ou a Maçonaria? Quem sabe ele, o gordinho calvo de quarenta anos, usuário de boina, fosse a esperança do mundo articulado pelos poderosos escritores? Ou seriam ELES?! Sim, ELEs, a maior força manipuladora do universo.... achou melhor entrar no jogo.

“Quero falar com o gerente.” O tom de voz levemente irritado e perturbado.

O gerente era um homem calvo, meia idade, uns dois anos a menos que R. Tinha aquele olhar cansado dos gerentes de livrarias. A camisa branca fechada pela gravata deveria estar matando o homem de calor. Mas R. não se importava nem um pouco com a desgraça alheia. Principalmente quando se tratava dos soldados do inimigo, aquele era um adversário para R., seu algoz, aquele que lhe daria pistas do que estava acontecendo. Observando o homem pode notar a marca em seu pescoço, sim, era isso, aquela não era uma pinta de nascença, era a marca de ferro quente que todos ELES recebiam...

Depois de uma grande discussão R. saiu da loja, o rosto vermelho pela briga, o suor escorrendo no corpo. Triste, sentou na calçada e pô-se a chorar. Suas lágrimas acompanharam o esgoto até as bocas de lobo. R. podia notar a tristeza no olhar de todos os seres vivos, TODOS sem “Brumas e névoa”, presos à ignorância eterna - no grande ciclo das fortes e manipuladoras forças.

O medo incessante do esquecimento fez R. levantar-se. R. não era um herói, a boina caída na sarjeta o fez lembrar dos grandes momentos de sua vida.

Não passava de um Aquiles fadado à prisão do Tártaro.

Sinos. Barulho de sinos e porta abrindo logo atrás de sua cabeça... Estava morrendo, ouvia a voz dos anjos e de Deus? Olhando para cima pôde ver a luz....

A luz de um enorme letreiro escrito “LIVRARIA SANTOS”.

R. escorregou , cambaleou , tropeçou, e quando finalmente pôs-se de pé, pisou na boina e caiu.

Novamente fez a dança do saltimbanco e correu para a vidraça. Viu um homem gordo sentado na banqueta de madeira e entrou. Os sinos tocaram magistralmente, os anjos verteram-se ao lugar dos homens e R. perguntou: “Vocês têm “Brumas e Névoas”?

O homem levantou, a barriga desceu. Com um sorriso bonachão, respondeu “Claro!Que tipo de livraria não teria esse livro?” Caminhou até uma porta nos fundos e disse “Espere aqui, senhor. Estão todos no estoque para evitar... problemas” essa última palavra teve significado grandioso para R. ele sabia que os inimigos espreitavam em cada canto da cidade. A Maçonaria, a Igreja, o Estado. Todos ligados à ELES. Não importa o tamanho do poder, todos aqueles que pensavam estar manipulando o mundo, estavam, invariavelmente submetidos a ELES. E somente R. sabia disso. Somente ele e o vendedor.

O tempo passou. Realmente foi um bom tempo, muitas pessoas saíam da loja, e outras, entravam. R. começou a pensar que algo estava errado. Viu pelo espelho que refletia o corredor que dois homens de terno azul escuro estavam parados perto da porta.

Era isso! O vendedor percebera os inimigos e não podia voltar, e também não podia avisar R. do perigo que corria!

Agora era uma questão de tempo, cabia a R. despistar o inimigo enquanto o valoroso aliado fugia com todas as cópias de “Brumas e Névoas” se a Resistência tivesse pelo menos uma cópia do livro poderiam levar a revolução à níveis descomunais!

Mas, e se desse errado? Torturariam R.? Matariam sua família? Ou o fariam ler livros de auto-ajuda , até que não agüentasse mais e desfalecesse em lágrimas e pedidos de misericórdia? Ou talvez, quem sabe, nunca tivesse existido Revolução, todos estavam ligados ao poder DELES, ou pior, não queriam ser livres! As pessoas estavam tão acostumadas ao sistema DELES, que elas simplesmente não saberiam viver sem isso.

A alma de R. se entristeceu, estaria ele lutando por uma causa perdida e solitária? Seria ele um vulto sob o manto de trevas que ocultam a mente? Ou, simplesmente nemo - ninguém, em uma luta já perdida contra todos?

Misteriosamente os homens sumiram. Uma menina, meio magrela, mas bonita, saiu do estoque.

“Você viu o gerente?” Perguntou R.

“Sim” respondeu ela. “É aquela senhora ali.” Apontou com o nariz. R. virou-se para olhar, não era possível, aquela não podia ser a gerente. Não. Era um homem. Gorducho, óculos, calvície. R. se aproximou, temeroso. Perguntou sobre o homem, mas as únicas respostas eram olhares de dúvida e risos abafados. Tal homem nunca trabalhara na loja.

R. entendeu, eram ELES.

Sim, tinham levado o pobre homem, o arauto da Resistência. Agora queriam enlouquecê-lo. R. saiu da loja com passos rápidos e confusos, tropicou num buraco e quase caiu.

Começava a chover, ele não se importava. As gotas dissipavam a névoa.

Na rua para sua casa viu dois homens com ternos azuis. Parados. Não se assustou com o terno, mas ninguém ficaria parado naquela chuva sem motivos sérios. Correu o máximo que pôde. Entrou em casa, fechou as janelas, trancou as portas. Arrastou o armário para travar as entradas. Até mesmo a geladeira serviu de apoio para a entrada de serviço.

Agora que se encontrava seguro, sentou displicentemente na poltrona da sala e apoiou os pés na mesa. Percebeu o amontoado de papéis sobre ela. Foi ajeitando-os até formar uma pilha mais ou menos organizada. Passou as folhas uma a uma, entre elas, uma peculiar, menos colorida, com uma capa branca e letras pretas.

“Brumas e névoa”.

Agora entendia. Não era tão simples, a vida, pregou-lhe uma peça. Não eram arautos , não eram agentes da resistência. Se escrevera o livro, então os outros apenas o protegiam.

Ele era a peça chave.... era o maior escritor do mundo, e guardava o segredo em casa....