A noite gritante
A vizinha chegou! Posso ouvir o barulho do portão enferrujado abrindo-se na horizontal e emitindo um ganido assustador. Ela fecha o portão, alguns instantes de silêncio depois e começa o barulho do serrote.
O serrote funciona por pelo menos 30 minutos e já seria o suficiente para que uma pilha de lenha estivesse pronta e ajeitada no quintal da casa, e lá não tem nada, só grama e gatos.
Em seguida um barulho de tambores tocando uma melodia indígena batucada por uns três ou quatro canibais. Dá calafrios. A música para e recomeça em intervalos exatos de 6 minutos, seguidos de um grito apavorante do tipo “HOP!”
Ouço o tilintar de lâminas confrontando-se. Ouço também os carros passando na rua e sinto ímpetos de correr e avisá-los: “Não parem aqui, não passem mais por essa rua, vocês serão engolidos assim que a besta aparecer”.
É noite e os sons se tornam mais assustadores do que realmente são, e, fazendo uma análise mais apurada do ocorrido posso dizer que não estou em minha razão quando digo que são assustadores. Na realidade são demoníacos, tenebrosos, escuros como o breu. Não ouso por o nariz perto da janela fechada nem para dar a mais mísera das espiadas. Deixo que os barulhos sejam o que são e não exagero na descrição deles nem um milímetro, mesmo quando em conjunto com tudo isso, seus gatos miam.
E já que não me arrisco a dormir, fico atenta a tudo. Eu sei que algo está acontecendo naquele lugar de serrotes, lâminas e miados que parecem uivos e o mais irreal: os tambores. E o grito de “HOP”. Um trovejar ao longe marca o horizonte negro com riscos brancos que caem e que não demorarão em chegar.
Só faltava isso mesmo.
O vento uiva por entre as cercas denunciando a chegada de um temporal, e os tambores anunciam que a noite será longa e surreal. Abafados pelas gargalhadas finas e estridentes que ecoam espaço adentro faz parecer doce o serrar do serrote. Será que a lenha não acabará? O quintal continua vazio.
Cessam os tambores. Apagam-se as luzes. Caiu um raio na caixa de luz no fim da rua, o estralo e as faíscas espargiram-se com o vento. Agora no escuro da casa, da rua e da mente, vagam em direção ao precipício, os sons ficam inacreditavelmente mais altos, mais volumosos, mais densos. Os olhos esbugalhados e mal lacrimejados imploram pelo piscar, mas o “HOP” insiste em ser gritado impedindo a sensatez.
A chuva começa forte em princípio, lenta em seguida e a luz é restabelecida, assim com o estado de espírito que chegou de soslaio e acha tudo uma grande bobagem. As risadas foram para baixo da terra juntamente com os pingos grossos para que ninguém se lembre delas, como se elas nunca estivessem existido. Surge uma alvura no breu denotando a ausência de tudo: serrotes, miados, lâminas, risadas e tambores.
Silêncio total do tudo e de dentro. O portão volta a ranger.
A vizinha saiu.