Complexo de Posseidon

O dia mal amanhecia e o sol, sem se anunciar, dado ser ainda quase madrugada pra meus atuais padrões, invadiu meu quarto, inundando-o de um calor gostoso, postou-se ao lado da cama e falou de modo irreverente e bastante descolado para alguém de sua idade e importância:

- E ai, meu bróder, tá na hora de levantar.

– Pô velho tá muito cedo ainda - disse eu e me virei para o outro lado. Não adiantou. O sol caminhou na minha direção, invadiu todo quarto e falou de novo:

- Pode ser bróder, mas eu trago um recado para você. À medida que o sol ia falando o quarto ficava mais quente. Aquilo estava começando a me irritar.

- Pó meu irmão, você podia ter telefonado.

- Telefonar hoje em dia é perigoso, a PF monitora todo mundo - contra argumentou o Sol.

- De quem é o recado? Perguntei com indisfarçável má vontade.

- É do mar.

- Mas eu estive com ele ontem à tarde, cara!

- Só estou trazendo o recado... defendeu-se o sol.

- Ta bom, consenti resignado, mais tarde vou falar com ele...

Mansamente, a terra com o seu movimento de rotação afastou o sol de meu quarto. Continuei na cama, o sono teimando em fechar meus olhos. Cobri-me novamente, agora que a temperatura do quarto voltara a ser agradável com a saída do sol, e mergulhei numa leve modorra. Por pouco tempo, devo dizer. Do lado de fora Eólo, o vento, silvava como uma serpente, uivava como um cão em noite de lua cheia e sacudia a janela com força.

- Putz, estes caras estão a fim de me encher o saco! Pensei.

Levantei-me a contragosto, me dirigi à janela e a abri não mais que um palmo, disso se aproveitou o vento. De maneira rápida e impetuosa, como soe ser, o vento, invadiu o quarto e se colocou a um canto, cruzou os braços, apoiou uma das pernas na parede e abriu a boca para começar a falar. Milagrosamente fui mais rápido do que ele e me antecipei.

- Já sei, você também traz um recado.

- Por que eu também? Perguntou

- Porque o sol já esteve aqui hoje bem cedo, eu disse.

- Desculpe, eu não sabia, só estou atendendo ao pedido de um amigo.

- Do mar? Perguntei.

- É, respondeu o vento, apressado e lacônico. Rápido como chegou se foi batendo a janela.

Comecei a ficar preocupado, tomei um rápido café da manhã. Sem pressa desci as escadas do prédio onde moro e tomei o rumo do oceano. Embora seja freqüentador assíduo de praias desde jovem e desfrute de alguma intimidade com o mar, nunca privei de sua confiança a ponto merecer ser convidado a conversar com ele com tanta insistência e através de elementos tão importantes da natureza, como o sol e o vento. Como moro na Atalaia a poucos metros da orla, logo estava na praia. Prudentemente, antes de pisar na areia, me sentei em um banco, de maneira discreta olhei para o oceano. Ele me pareceu menos agitado do que o normal parecia triste, sorumbático até, e ainda não havia me notado.

Caminhei vagarosamente em sua direção praia adentro, olhei-o demoradamente pensando ensimesmado: como pode ser triste o oceano, se ele é tão vasto?

- Pois é a minha vastidão é a minha desgraça. Falou pela primeira vez o oceano. Ele lê pensamentos, surpreendi-me.

- Obrigado por ter vindo - agradeceu o Oceano Atlântico.

Sentei-me na areia, olhando-o de frente e preparado para ouvir o que ele, o oceano tinha para me dizer.

Entre uma onde e outra ele começou a falar:

- Eu sou o segundo maior e mais importante dos oceanos, só perco para o Pacífico. Vou de um Pólo Terra ao outro, banho a África as três Américas e chego até a gelada Groenlândia. Neste meu extenso caminho, banho centenas de ilhas, formo um sem número Baías, Golfos e Enseadas. Minhas águas alimentam ou formam inúmeros mares.

Na América do Sul o Mar das Antilhas; na América do Norte o Golfo do México.

Através de Gibraltar separo a Europa da África (uma das façanhas de Hércules, separou os montes Calpe da Espanha e Abília da África), alimento o Mediterrâneo, o mais famoso e charmoso dos mares, por via indireta alimento também o Tirreno, o Jônico e o Adriático. O canal da Mancha está nos meus domínios e nele, ancorado como um enorme navio está a Inglaterra. O Mar do Norte e o Báltico também se abastecem de minhas águas e finalmente no extremo Norte o Mar da Noruega. Ah!, Também o Mar Negro deriva de minhas águas.

- Ei, menos! Eu o interrompi. O Mar Negro é um mar interior, protestei.

- Eu sei - disse o Oceano - mas o Egeu, que me pertence, forma o pequeno Mar de Mármara e através do Bósforo, forma o Mar Negro, que por sua vez origina o Mar de Azov. E então?

- É, desse modo você está certo. Concordei.

- Mas continuando, disse ele: eu hoje enfrento o mais temível, letal, ardiloso, cruel, insano e destrutivo de todos os meus inimigos desde o início dos tempos: o homem.

Ele desmata e queima as florestas, derruba as matas ciliares, assoreia, obstrui, represa, seca e por fim mata as minhas artérias e veias, que são os rios.

- Polui a atmosfera, destrói a camada de ozônio, derrete a calota polar, fazendo subir o nível de minhas águas e dos outros oceanos. Os homens através dos séculos despejaram em minhas águas, os seus restos e os seus dejetos. As milhares de criaturas que vivem em minhas águas já estão pagando alto preço.

- Reaja! - Instiguei-o.

- Como? - Perguntou-me o Oceano.

- Como você já vem fazendo em várias partes do planeta, tomando de volta o que lhe roubaram!

- O custo seria muito alto para a humanidade. Muitas vidas seriam ceifadas, morte, desolação, dor... não é minha missão. Desde o tempo do grande Caos, desde a era dos Titãs, que minha missão é transportar e alimentar os homens.

Imagine você como eu me sinto. Falou consternado.

- Imagino e tenho dó. Falei condoído.

- Não se apiede de mim - reagiu o Oceano - alguma saída deve haver. Essa insanidade tem que acabar. Recuso-me a definhar desse jeito. Eu ajudei e vi civilizações florescerem, queixou-se ele.

- Ajudou também a destruí-las – argumentei.

- Mas eu trouxe até aqui Colombo e Cabral – se defendeu ele.

-Trouxe também Hernan Cortez e Francisco Pizarro - contra argumentei. Iconoclastas, assassinos cruéis, saqueadores e genocidas. Arrasaram civilizações pacíficas e prósperas; Maias, Astecas, Incas... Você deve se lembrar, quando a Europa ainda estava na idade das trevas, e os homens de lá ainda andavam nus e dormiam em cavernas, aqui nas Américas já se praticavam a astronomia e a engenharia; pirâmides tão esplêndidas quanto as egípcias foram erguidas, as cidades e as estradas pavimentadas, havia um sistema de aquedutos interligados, a agricultura era avançada e irrigada.

- Mas eu trouxe a imprensa e o livro para as Américas! Lembre-se! Protestou.

- Trouxe também a espada, o arcabuz e o canhão - rebati.

- Eu transportei para cá a civilização e as artes. Afirmou com voz grave.

- É verdade! Mas junto, você trouxe as doenças e os vícios dos brancos, que mataram de forma silenciosa milhões de nossos índios.

- Você, continuei eu, sem lhe dar chances de retrucar - foi coadjuvante da escravidão negra, transportou homens livres para torná-los escravos em terras americanas. Permitiu que os navios negreiros singrassem impunemente suas águas. Você compactuou e acumpliciou-se com tamanha vilania. Você podia ter apagado de sua face essa mancha vergonhosa. Mas não o fez!

-Não pode me culpar por todos os males da humanidade – se defendeu o oceano. E continuando: No tempo do politeísmo tudo era mais fácil. Havia uma plêiade de onze deuses e Zeus os coordenava. Cada um cuidava de um elemento, administrava alguma atividade. Ai veio o cristianismo, impôs o monoteísmo, inventou a incompreensível Trindade – O Pai; o Filho, para o quem, vocês homens, viraram as costas, lavaram as mãos e o crucificaram; e o Espírito Santo e tudo ficou mais difícil. Terá sido para cortar gastos? Ironizou o Oceano.

- Agora a culpa é do cristianismo. Muitos povos ainda são politeístas e você não passa de um pagão herético! Lancetei-o.

- Quem você pensa que é – enfureceu-se o Oceano - para me admoestar desse jeito? Posseidon, meu antigo senhor? Lembre-se, você é apenas um "mortalzinho de merda"! É isso que vocês homens são. Mortaizinhos de merda!

- E você, contra ataquei de maneira ferino e destilando veneno, uma grande cloaca, um velho lamuriento, um leão sem dentes, morrendo de pena de si mesmo, um marzinho insignificante.

- Oceano! Vociferou tonitruante.

Agora enfurecido, encapelado e falando grosso, o oceano recuou, formou uma grande vaga e como um felino preparou-se para atacar. Ambos estávamos de pé. - Eu, o oceano tinha toda razão, um mortalzinho de merda, com complexo de Posseidon, insensatamente em atitude hostil diante dele. Ele, colossal, vasto, temível, majestoso, belo e assustador.

O embate parecia iminente e o vencedor já estava definido.

De repente, o oceano, numa atitude de grandeza, amainou sua fúria, apascentou suas ondas e a mais doce das suas marolas veio até onde eu estava e lambeu meus pés.

– Perdoe-me, eu me excedi, disse humildemente o Oceano Atlântico.

Sentei-me na areia aliviado. Envergonhado e cabisbaixo falei.

– Perdoe-me você também pelas grosserias que lhe disse. Mas afinal em que eu posso ajudá-lo? Eu sou apenas, como você falou há pouco...

- Um homem, atalhou-me ele rápido. Você é um jornalista!

- De faz de conta, e ainda por cima aposentado.

- Você escreve, argumentou ele. Conte a nossa conversa.

- Se alguém se der ao trabalho de lê-la, vai achar que eu estou ficando maluco. Conversar com o Oceano, imagine!

- Tente! Instou-me Não se omita! Você tem amigos. Essa destruição incontrolável da natureza tem que acabar! Denuncie! Se apenas um dos seus amigos ler esta estória, terá valido a pena. Cada amigo seu deve ter um amigo...

- Muito bem, você me convenceu, vou contá-la, resolvi. Pelo menos quatro de meus amigos haverão de ler, pensei. Mentalmente repassei os nomes dos amigos que talvez se dêem ao trabalho de ler a estória; Airton, Jaime, Vavá, Paixão e quem sabe, um dos meus filhos.

- É noite, disse o Oceano. Selene já está no céu.

- É mesmo, me surpreendi. Há mais de dez horas que estamos conversando. Vou para casa, afinal de contas tenho necessidades que só os humanos têm. Boa noite, meu velho. Despedi-me e dei-lhe as costas.

- Boa noite, respondeu ele, e quando eu já estava me afastando, deu uma estrondosa gargalhada e completou galhofeiro, - mortalzinho de merda!