CONTOS RAIVOSOS 1.: DA SUBLIMIDADE LÍRICA DOS PARTIDOSOS
Nepomuceno foi sempre pessoa de admirações: Espanta-se perante a beleza, mas também perante a fealdade e inclusivamente ao ouvir o que recitavam os homens de partido, de partido político, que, com ele, chamarei em diante "partidosos", simplesmente partidosos.
Nepomuceno habita na Galiza. Preciso: Habita na “Comunidad Autónoma de Galicia”, dito seja com o maior dos respeitos tamanho rótulo em castelhano, que é a língua nacional do reino bourbónico, quer dizer, do reino presidido por um descendente daquela casa régia originária de Navarra, passada à França e repassada, por volta de 1700, ao território de reinos diversos, abrangente do atual “Estado español”.
Bom, o espanto maior do Nepomuceno toma origem (ou acaso causa) na linguagem dos partidosos, particularmente dos governantes, que, por disporem do poder, são capazes de dar nome aos objetos, às situações e inclusivamente às pessoas.
Assim, desde 1975, ano da morte do Caudillo Franco, vencedor da que os bispos católicos denominaram e ainda denominam “Cruzada contra el comunismo ateo”, os partidosos vêm fazendo com que o regime aquele seja deglutido pelos cidadãos como se fosse democrático.
Para o conseguir os partidosos (nacionalistas “españoles”) acodem à retórica clássica no convencimento de que os seus súbditos (também denominados cidadãos) acabem entendendo à perfeição como é que pode ser a democracia “a la española”. Poderiam explicar-lho utilizando como referência a “tortilla de patatas”, que todos eles conhecem e degustam, mas optaram por se abrigar sob as sublimidades dos recursos literários.
O mais utilizado é um novo, conjunção de duas velhas figuras retóricas: a metonímia e a metáfora. Observava Nepomuceno que ambas começam pela palavra (prefixo ou preposição) grega “metà”, que vale tanto quanto dizer “transposição” ou “transferência”. Na metonímia o “quid pro quo” decorre entre objetos (parte por todo ou todo por parte, tanto tem); na metáfora, porém, entre denominações, quer entre palavras ou inclusivamente entre expressões.
Seja como for, Nepomunceno achava-se, como Dom Quixote “de claro en claro” e “de turbio en turbio”, ante duas expressões solenes que os partidosos nos governos argalharam sucessivamente.
A primeira dizia “Comunidad Autónoma” ou simplesmente “Autonomía”. Como Nepomuceno suspeita que os partidosos “españoles” apenas conhecem a sua língua nacional, a castelhana, consultou diretamente os "diccionarios" da “Real Academia Española”. Viu que “autonomía” em 1983 era definida, na primeira acepção, por “Estado y condición del pueblo que goza de entera independencia política”, enquanto na edição de 2001 tal significado desaparecera e passara a primeiro termo a que era terceira acepção: “Potestad que dentro de un Estado tienen municipios, provincias, regiones u otras entidades, para regirse mediante normas y órganos de gobierno propios”.
Nepomuceno ficou abraiado: Nunca pensara que as mudanças na língua fossem tão rápidas e profundas, mas se a “Real Academia Española” as evidenciava é que assim decorrem...
Não obstante, procurou comprovar, por redução ao absurdo, a veloz mudança e consultou os significados atribuídos ao adjetivo “autónomo, -a”: “Que tiene autonomía” reza a edição última; “Que goza de autonomía” assinalava a de 1983. O espanto de Nepomuceno medrou até extremos graves ou hilariantes; depende. Por que? Não sei se entendi bem as explicações que me deu, mas vou tentar reproduzi-las. Educadamente disse-me:
—Observarás, caro amigo, que a RAE, em 2001, atribui à “Comunidad autónoma” “tener” o que na realidade não tem, porquanto quem o tem é outro, o Estado, o Reino: é este o que concede “regirse por normas y órganos de gobierno” não próprios, mas outorgados. Enquanto, em 1983, reconhecia que o povo “autónomo”, quer dizer, daquela o “independente”, “goza” da sua independência, com toda a lógica, porquanto é dono de si.
Ficou longamente calado, absorto na reflexão, como envolvido no achado paradoxal. Depois continuou:
—É como o CER e o CERA.
CER, CERA? Repeti estranhado:
—CER = “Censo Electoral de Residentes”, ou algo parecido. CERA = “Censo Electoral de Residentes Ausentes”. “Residentes” apenas, bom, vale, mas “Residentes Ausentes”...? Se são ausentes sem determinar os tempos da ausência, podem ser residentes? Neste Reino, aos efeitos fiscais, a ausência não pode ultrapassar o meio ano, mas há “Ausentes” de por vida: Podem esses ser considerados “Residentes”?
Agora o calado fui eu. Tinha razão Nepomuceno. De facto esses “Residentes Ausentes”, como a seguir me explicou, não computam (que “palavro”, meu Deus!) aos outros efeitos, salvo no de emitir o seu voto e dessa maneira, sem garantia nenhuma de que o votante seja decerto o “Residente Ausente” em causa.
Nepomuceno concluiu sem mais reviravoltas:
—Portanto, amigo, podes comprovar que os partidosos são poetas consumados, perfeitos. É com o manuseio das palavras que conseguem convencer os súbditos (ditos cidadãos) das “verdades” mais falsas. E a gente, o Povo fica tão contente, feliz de ser governado por partidosos tão líricos. Quem disse que a literatura não vale para nada? Quem disse que para gostar da literatura e se convencer da sua mensagem se precisa saber ler e escrever, mesmo?
Paguei as nossas consumições e fomo-nos embora: Nepomuceno, feliz por investigar e dar com achados certos; eu, satisfeito por ter aprendido algo fora dos circuitos públicos.